Dirigindo craques

Por Adamo Bazani

Livio e Adamo
Livio conta suas lembrança ao repórter Adamo Bazani

Imagine uma seleção com jogadores de diferentes épocas. Luís Pereira, Dener, Túlio, Casagrande, Lea, Jair Picerni, Badeco..

O motorista de ônibus Lívio Lisboa, de 60 anos, teve a honra de conhecer pessoalmente todos estes nomes e muitos outros que poderiam formar várias equipes de craques que renderiam verdadeiros clássicos. Lívio, hoje trabalha na empresa de ônibus de fretamento Opinião, em Ribeirão Pires, na Grande São Paulo. Ele começou no transportes de passageiros, em 1977, na EAOSA – Empresa Auto Ônibus Santo André. Pouco tempo depois, foi trabalhar na empresa de fretamento de ônibus Viação Benfica, de São Caetano do Sul, também na Grande São Paulo.

“Nessa empresa tive a oportunidade de conhecer de tudo um pouco. A diferença do transporte urbano para o de fretamento é que neste a gente trabalha com grupos específicos: operários, sindicalistas, estudantes, religiosos e até artistas”, diz Lívio Lisboa.

Ele contou que trabalhou na Viação Benfica para grupos teatrais percorrendo o País inteiro com Paulo Gracindo e companhia. Prestou serviços para diversos profissionais da música, como da Casa da Música de São Paulo, onde conheceu o Bira, do Programa do Jô, entre outros. No entanto, o que mais desperta saudade em Lívio é a época em que a empresa Benfica firmou contrato com a  Confederação Brasileira de Futebol e a Federação Paulista de Futebol.

“Aí pude aliar minhas duas paixões: o volante e o futebol”, revela Lívio, que de tanto envolvimento com o mundo da bola, hoje é técnico credenciado pela Federação Paulista e já dirigiu equipes de base em São Caetano do Sul.

E o mundo da bola e o dos transportes são muito mais ligados do que muita gente pensa. A relação entre motoristas de ônibus, técnicos, jogadores, presidentes de clubes e torcedores sempre foi intensa. “Vi jogadores se formarem e crescerem”.

Viu, por exemplo. a ascenção de Luís Pereira, do Palmeiras. “Ele jogava pela time da General Motors. Um dia foi disputar um jogo contra o São Bento de Sorocaba. O pessoal do interior paulista simplesmente ficou maravilhado com a habilidade do craque. Pouco tempo depois, ele brilhava no Palmeiras”.

Vários jogadores tornaram-se amigos de Lívio,. Sempre o presentearam com  camisas, flâmulas (muito comuns na época), distintivos, bonés. “Até participei de rachões na Portuguesa, onde fiquei mais de quatro anos prestando serviços como motorista da Viação Benfica”.
Lívio sentiu a morte do jogador Dener, como se fosse um familiar que partiu. Segundo o motorista, Dener sempre tratava bem os motoristas e demonstrava muita humildade.

Mas nem tudo era amizade e confraternização.

A violência das torcidas

Lívio conta que no fim dos anos 80, a violência entre torcidas começou a crescer muito e trabalhar no transporte de jogadores e torcedores se tornou perigoso. “Num jogo entre Ponte Preta e Portuguesa, em Campinas, a coisa esquentou. No último minuto, a Portuguesa conseguiu fazer um gol. Na volta, nosso ônibus foi cercado. Num determinado ponto do trajeto, ouvi um barulho muito forte enquanto o ônibus passava entre torcedores furiosos. Foi um tiro que atingiu o pára-brisa esquerdo. Segundo a Polícia, por pouco o projétil não me pegou.”

Transportar torcedores era mais arriscado ainda. Ele se recorda que, em 1995, num jogo entre Portuguesa e Marília, foram mandados para o interior, 40 ônibus da Benfica. Só 12 voltaram sem ser danificados.

Em relação às torcidas uniformizadas duas coisas presenciadas pelo experiente motorista o marcaram: a violência quando as torcidas rivais se encontravam no meio do caminho e os rituais de batismo de novos membros, que às vezes aconteciam dentro dos ônibus mesmo.

Lívio lembra-se de uma oportunidade em que Palmeiras e Botafogo jogaram no Rio de Janeiro, onde também se enfrentaram São Paulo e Fluminense. Os ônibus com as torcidas do São Paulo e do Palmeiras se encontraram na rodovia Presidente Dutra.

“A torcida do São Paulo tinha feito uma parada num posto em Queluz. O restaurante já estava destruído. Quando souberam que o ônibus com torcedores palmeirenses se aproximava, os sãopaulinos ficaram alvoroçados. Se não fosse a Polícia Rodoviária Federal nos alertar, desviar nosso curso e nos escoltar, teria acontecido uma tragédia.”

Não são raras as vezes que Lívio lembra de torcedores com armas e bombas de alto poder de destruição dentro dos ônibus. “Não parecia que estava dirigindo um ônibus fretado e sim um ônibus militar para a guerra, mas que não era blindado”.

Já em relação ao batismo de novos integrantes de torcidas uniformizadas, Lívio recorda de cenas chocantes. Dentro do ônibus gritavam o nome do novato. Mais de 40 pessoas então o espancavam. O membro novo que não reagisse às agressões era expulso.

“Um integrante de uma uniformizada (Mancha Verde) me falou que a reação da vítima do batismo era sinal de que o novato era uma pessoa forte e se houvesse uma briga com uma torcida rival, o grupo poderia contar com essa pessoa. Algo assustador”
Nas viagens mais longas com torcidas, havia uma espécie de acordo entre torcedores de estados diferentes, mas que se identificavam.

“O pessoal do Palmeiras tinha o amparo dos vascaínos para qualquer situação. Às vezes, para um jogo contra Flamengo, Fluminense, Botafogo, etc, nosso ônibus ia primeiro para São Januário, do Vasco. Já a torcida do Corinthians era recepcionada por flamenguistas. Isso nos anos 80”.

O dia em que Leão dirigiu o ônibus

Situações inusitadas também foram vivenciadas por Lívio, quando ele dirigia os ônibus da empresa contratada pela CBF para servir os clubes. Um fato jamais esquecido por Lívio foi com o então técnico da Portuguesa, Emerson Leão.

Era uma sexta-feira e o time tinha de embarcar num avião no Aeroporto de Congonhas às 4 da tarde. O destino do time, Lívio não se lembra. O trânsito estava infernal. Então, o Emerson Leão passou de técnico de futebol para técnico de tráfego.

“Ele foi ao meu lado indicando caminhos alternativos por onde eu deveria passar. Mas algumas rotas dentro dos bairros não eram para ônibus. Eu, educadamente, explicava que não dava para passar em determinadas ruas, mas com o Leão não tinha jeito”. Repentinamente, o ônibus foi parar numa descida tão íngreme, num bairro da zona sul da Capital Paulista, que pelo comprimento do veículo não dava para fazer a curva no final do declive. Rasparia o pára-choque traseiro.

“Só sei que tivemos de percorrer mais de 300 metros de ré.” Um funcionário do clube desceu do ônibus, foi orientando Lívio e desviando o tráfego.

O ônibus teve de refazer boa parte do trajeto inicialmente planejado pela empresa. O time chegou faltando menos de cinco minutos da partida do vôo. A correria dos funcionários do clube, dos jogadores do clube e de Leão foi intensa, “Só via o pessoal literalmente entrando nos bagageiros do ônibus para descarregar e entrar no aeroporto”. Apesar do atraso do ônibus, a companhia aérea deu um jeitinho brasileiro e os jogadores conseguiram embarcar.

“Hoje é diferente, o ônibus é que chega na hora e o avião que atrasa” – ironiza Lívio

Ele se aposentou na Viação Benfica, ganhou prêmios como placas e relógios por causa do tempo de empresa, 27 anos, mas não conseguiu ficar longe do ramo de transportes ao se aposentar. Voltou a atuar, desta vez na Viação Opinião, empresa de fretamento também. O fretamento para passageiros é considerado por Lívio uma das maiores oportunidades para o profissional interagir com diversas culturas, profissões e tipos humanos.

“É uma faculdade sobre o ser humano sobre rodas” – complementa.

Adamo Bazani é jornalista, busólogo e torcedor fanático do pessoal que mostra seu talento no comando de um ônibus. Toda terça-feira está aqui no blog.

8 comentários sobre “Dirigindo craques

  1. Parabéns pela matéria Adamo. Como você sabe, sou morador de Ribeirão Pires e já morei no mesmo bairro do Sr. Lívio. Me lembro dele ainda na Benfica descendo com um Marcopolo Viaggio GV1000 Mercedes-Benz O-400 RSE com ar condicionado fazendo transporte de funcionários de alguma empresa. Também me lembro do tempo em que os supermercados da Rede Barateiro (hoje Compre Bem) ficavam fechados aos domingos. Os domingos eram reservados para disputa de Campeonato de Futebol entre as lojas, além de confraternização dos funcionários e famílias. Como minha mãe era funcionária, eu também participava desta confraternização. E a empresa que sempre fazia o transporte dos funcionários e suas famílias para este dia de recreação era a Benfica. Eu me lembro muito bem do Sr. Lívio fazendo o nosso transporte em um destes encontros.

    Um grande abraço à todos!

    Rafael Augusto de Carvalho

  2. Parabens !!!

    Belo trabalho Adamo, pois atraves de materias como estas condeguimos lembrar um pouco da nossa história que ficou para tras, mas que deixa muita saudade, muito boa a foto do Torino Scania reencarroçado.

    Sucesso.

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