Conte Sua História: O leiteiro e a vacaria

Ouça o texto O Leiteiro

Por Antonio Quadrado
Ouvinte-internauta do CBN SP

Ao olhar do moleque, o estribo da velha carroça parece inalcançável. A mão forte do carroceiro, de um só empuxo, alça o garoto como se fora uma pluma.

–    “Bom dia Seu Manolo.”
–    “Bom dia garoto, usted ainda tá dormindo?”

Não era pra menos; seis horas do quase-escuro da manhã só não se tornava sacrifício, pelos trocados recebidos do trabalho e pelas histórias que, sem dúvida, o dia ainda iria render.

E mais, depois de tanto tempo na fila do rodízio, a oportunidade era como que uma vitória. O astuto leiteiro devia saber disso.

O friozinho da manhã, o balanço da carroça no piso de terra, o másculo relinchar do “puro-sangre”, os engradados superpostos dos litros do leite ainda quente; o direito a beber o quarto-de-litro do “mais puro leite do Brasil”; tudo soava a aventura, para cada um dos garotos que disputavam a oportunidade de entregar o leite nas casas da redondeza.

Além disso, havia o sino – “El Magnífico” – montado sobre a lateral direita da carroça, que o ajudante-da-vez  tinha o direito de tocar – “em cinco badaladas” – tão logo chegassem em frente a casa de cada freguês.

Após o anúncio d’El Magnífico, o rápido salto estribo-chão com a carroça em movimento, precedia o recebimento do morno litro de leite a ser entregue ao próximo cliente.

Tudo em correria, já que o puro-sangre continuaria sua pomposa marcha, como se nada acontecesse a seu redor.

O retorno, um pouco mais complicado. Uma pequena corrida paralela à carroça, a mão esquerda segurando a lateral oblíqua da caçamba e o salto – quase sempre certeiro – no estribo, preparavam o empuxo firme e preciso da mão direita do piloto-espanhol .

Um belo balé, que o eventual nevoeiro da manhã buscava testemunhar.

–    “Josezito!!! Anda conho! Que te capo los huevos!”

A voz estridente de Dona Dolores berrava argumentos-definitivos, para trazer de volta o filho, que sempre estava pronto a atender a mãe, após a sexta convocação.

A não ser que Dona Manuela, irmã de Dolores e mãe de um, também José – com o mesmo J aspirado dos espanhóis – já tivesse, após a terceira estridência de Dona Dolores, ido a cata dos dois Zés.

Sempre assim; calma e eficiente, a meiga Dona Manuela; esposa do primeiro patrão de toda a molecada da Vila, o produtor “do melhor leite do Brasil”.   Como tantos outros imigrantes, chegados dos porões dos navios para a lavoura, acabaram se enroscando na dita cidade-grande; onde fizeram vida e filhos.

A velha Galícia se despedia dos seus.  Duas irmãs, recém casadas, e respectivos maridos.  O quarteto de aventureiros buscava, no “paraíso tropical”, “olvidar as conseqüências de la güerra”  e criar os filhos que a “madre de Dios” com certeza lhes mandaria.

Dessa aventura, nasceu a famosa Vacaria: a família dos “Zés da Vacaria”;  “Mimosa” (como o “s” dobrado) e mais meia dúzia de vacas; o touro – que a garotada insistia, por óbvio, chamar de “El feliz comedor” e mais dois cavalos: “El Magnífico” e sua fiel companheira, eventual substituta nas marchas do “coche del leche”.

Dessa aventura:

O leite de qualidade, em boa parte responsável pela saúde do povo-da-Vila e a iniciação da garotada: na dignidade do trabalho; na aventura da equitação pelo galopar nos morros do faroeste tupiniquim e pela fuga, sempre impossível, quando flagrados pelo leiteiro-torturador-de-orelhas; e no esplêndido  portunhol que, todos, acabamos por adquirir.

O autor do Conte Sua História de São Paulo é o ouvinte-internauta Antonio Quadrado. A sonorização é do Cláudio Antônio. E você pode participar, também: envie seu texto ou arquivo de áudio para o e-mail contesuahistoria@cbn.com.br. O Conte Sua História de São Paulo vai ao ar, sábados, às 10 e meia da manhã.

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