A Viagem ( final)

 

Por Sérgio Mendes

 

Leia aqui o 1º capítulo de “A Viagem”

 

Leia aqui o 2º capítulo de “A Viagem”

Leia aqui o 3º capítulo de “A Viagem”

 

Naquela posição, ninguém ainda tinha percebido direito o que acabara de acontecer e a sensação de que meu pai daria outra vez a partida e continuaríamos, persistiu até que ele saiu do carro. Após submergir de nossas vistas na janela, emergiu com aquela cara de ‘hum, hum’ que eu nunca mais me esqueci. O eixo traseiro estava partido em dois, e as rodas dobraram se sobre ele fazendo a traseira do carro abrir as pernas fora do asfalto. Nós e o corcel amarelo em pleno Cerrado, frente e verso traspassados pela estrada a perder de vista dos dois lados. Então, saímos todos do carro e nos reunimos numa sessão do conselho diretor para discutir o que faríamos.A conclusão foi que um dos adultos seguiria de carona até a próxima cidade para buscar socorro, e os demais montariam guarda na estrada pra assegurar que o tal socorro tivesse a quem socorrer na chegada.

 

Assim se fez e assim aconteceu!

 

As horas a partir de então, foram uma sucessão de generosidade anônimas e o esvaziamento total das reservas familiares. Por causa disso, a viagem se completou com suas ultimas 24h a bordo da nave da mamãe.

 

O socorro chegou com o socorrista que depois de um exame minucioso na fratura exposta, igualmente emergiu a nossas vistas do outro lado do carro, com a cara de ‘hum, hum’ escondida detrás dos óculos de fundo de garrafa. Não conseguiu nos assustar por que a cara já tínhamos visto! Conversa vai, conversa vem, e nós em silêncio acompanhando o ping-pong. Hora olhando para um lado, hora para o outro.

 

Depois de muita exclamação e de cada um dos três partícipes naquela negociação dar umas duas ou três coçadinhas na própria cabeleira, chegaram a um acordo: o mecânico rebocaria o nosso corcel, providenciaria outro osso igualzinho e ainda faria o implante a troca de todos os centavos que nos restasse naquela altura do campeonato!

 

Demos o ping-pong por encerrado.

 

O socorrista, com ares de sabe-tudo e muito boa vontade, amarrou bem amarrado o eixo do nosso corcel e nos montou a todos, exceto o meu pai, na garoupa do seu próprio pangaré e fomos rebocados até o seu hospital de pangarés na entrada da cidade mais próxima. Meu pai ficara no nosso carro, apenas manobrando.

 

Ao chegar, apearam o paciente e entraram com ele para a mesa de operação. Do lado de fora da janela do CTI, quatro pares de olhos pequenos, arregalados, não perdiam uma só cena daquele capítulo final. Estávamos esticados e de pé, cada um esticado como era possível, é claro, obedecendo as curvas na coluna impostas pelos últimos dias.

 

Uma senhora que acompanhara nosso drama desde a chegada do comboio( pangaré partido e pangaré resgate) nos ofereceu sua casa para o pouso enquanto providenciavam outro eixo de outro pangaré partido em algum outro lugar. Dormiríamos aquela noite na casa dela.

 

No dia seguinte pela manhã, a peça chegou e o implante foi completado. Depois de um café com pão, leite e muito amor, estávamos de volta ao asfalto ou o que se pudesse chamar aquilo sob o carro, nas ultimas horas da nossa aventura. Prosseguimos nossa viagem pelo restante de estrada que faltava. A maior parte do tempo em silencio.

 

Nem mais a caixa do meu piano, nem as dores no corpo, nem as tensões pelo esgotamento quase completo de todo dinheiro disponível eram maiores que a vontade de chegar. À noite daquele último dia, passamos em um outro posto de combustível junto de uma porção de caminhões e seus caminhoneiros a quem meu pai contou a nossa história. Logo estávamos outra vez cercados do apoio de gente nossa, no meio de um mar de caminhões. Dormimos no carro.

 

Pela manhã, mais café com pão e estrada.
Então, já dentro do Mato Grosso.
Chegar em casa agora, era uma questão de horas.

 

Por volta das 16h, eu entre acordado e dormido e com meu pescoço curvado, por castigo sentado no meio do banco, avistei as luzes da nossa cidade. Lembro de tentar acordar minha tia e que ela me respondeu com um sopapo como se pensasse aquilo ser só mais uma brincadeira de mau gosto.

 

Me deixa dormir! Ela resmungou sem acreditar que a viagem chegara ao final. Mas logo as luzes invadiram o carro e todos os ainda dormidos despertaram. Como era boa aquela sensação!

 

As ruas que faltavam até o fim, eram bem conhecidas e mais um par de curvas, avistamos a praça da vila militar. Foi minha mãe quem abriu o portão e recolhemos o carro. Ninguém nem tocou e nada dentro dele. Só queríamos sair e reencontrar a casa.

 

Na manhã seguinte a nossa chegada, antes que os demais acordassem, fui eu quem me encarreguei de desmontar a cangalha. Não tive impulsos de dirigir o corcel e desmontei os fardos colocando as coisas no chão. Tudo tão indispensável que em uma noite, ninguém precisou de nada guardado dentro dele.

 

Pra que fique bem gravado na memória:

 

‘Nunca subestime nossa capacidade de acumular tranqueiras.’
Ao abri-lo, a fechadura respondeu bem e destravou a porta.

 

Soube depois que o corcel transplantado ainda carregou a família por mais algum tempo, antes de se estrelar num muro em uma balada etílica, a 50km/h, acordando um velhinho no meio da madrugada. Mas eu já não morava mais com meus pais. Naquele mesmo ano iria para um internato militar e igualmente não toquei mais no meu piano que até hoje segue embalado em sua caixa, em algum lugar de nossa casa. Não toquei nem quando retornava por alguns dias nas férias.

 

Isso aconteceu na ultima vez que viajamos todos juntos. Seis dias de carro, um corcel amarelo.

 

Ps: A fechadura colada com chicletes nunca foi descoberta. Nem depois que ele passou para outras mãos. Pelo menos não que eu tenha ficado sabendo.

Um comentário sobre “A Viagem ( final)

  1. Fantástico, Sergio.

    6 dias num corcel e um relato incrível, sensível, gaiato por horas, divertido, que culminaram num final profundo e comovente.

    Lindo!

    Parabéns!

    E queremos mais. 😉

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