Por Marina Zarvos Ramos de Oliveira
Caro Sr. Otacílio
Dias destes fui surpreendida com o anúncio de “aluga-se” afixado na porta da sapataria, na avenida dos Jamaris, 442, em Moema. Confesso que fiquei atônita, sem chão. Como assim, aluga-se? E o “seu Tacílio” – maneira carinhosa como todos o tratavam? Suspendi a respiração e um pensamento funesto atravessou-me como um raio. Tentava entender aquele vazio quando passa por mim uma amiga:
– Você sabe o que aconteceu com seu Tacílio? pergunto um tanto temerosa.
– Ele parou de trabalhar, responde sem titubear.
Trocamos algumas poucas palavras, pois o tempo na cidade grande não nos permite aprofundar e estreitar os laços, infelizmente. Prossegui meu caminho num misto de sentimentos, enquanto segurava a sacolinha com meus sapatos avariados. E agora?Quem cuidará deles? Murmurava e andava a esmo. Tentava me convencer de que Moema tem comércio farto, que não seria difícil reparar meus sapatos. Mas não era apenas o profissional que conserta sapatos que perdíamos. Perdíamos, perdemos, o nosso querido Tacílio… Pessoa ímpar, artesão no ofício de consertar calçados. Pessoa doce, meiga, serena, de sorriso fácil com os lábios e com os olhos.
Estabeleceu-se há 50 anos em Moema e desde sempre cuidou com extrema competência de sua clientela – traduzida nas orientações de como cuidar dos sapatos, no cumprimento da data de entrega, na habilidade em coser, engraxar, lustrar, colar, reformar e reparar tudo que fosse necessário para que saíssemos com os velhos “novos sapatos” reluzentes.
Cuidou também de seu espaço, pintava a pequena sapataria com esmero e organizava as prateleiras que o acompanhavam há cinco décadas, no mínimo. Cuidou como poucos da natureza, plantou as duas frondosas árvores que mais pareciam colunas de um templo, que adornavam a entrada de seu singelo negócio.
Diariamente, exceto às segundas, lá estava ele detrás do balcão, sentado em seu banquinho, a martelar e polir. Por volta de 11 horas era possível sentir o aroma de tempero caseiro. Ele abria a marmita e fazia a refeição ali mesmo, altar em que celebrava a vida com seu ofício.
Às cinco da tarde, outro aroma. Perfume agradável misturado às graxas e tintas. Era “seu Tácilio” a se preparar para ir embora. Perfumava-se, aprumava-se e baixava a pesada porta. Foi assim desde que aqui cheguei, menina ainda. Lá se vão 46 anos.
Esse ilustre vizinho acompanhou de seu banquinho toda a transformação do bairro. Lugar pacato e rico em brejos, que atraía cavalos em busca de saciar a sede; lugar da algazarra e do pouso de pássaros, nos primórdios. Anos depois, lugar dos grandes “pássaros de aço” com sua algazarra ensurdecedora noite adentro, em pousos, vez ou outra, catastróficos. Acompanhou a pavimentação das ruas, a chegada do Shopping, o ”boom’ imobiliário, o ”point” das chopperias e, recentemente, do metrô, nos subterrâneos da mesma avenida Ibirapuera, em que outrora correra o bonde. Sempre de seu banquinho.
Nos últimos tempos “seu Tacílio“ sofreu alguns duros golpes, eu imagino. Ao menos um ele confidenciou. Por ocasião das grandes chuvas do início do ano, uma das árvores plantadas por ele, desabou. Quem testemunhava seu zelo e amor por elas solidarizou-se. Ele, num misto de tristeza profunda e de impotência, frente às forças da natureza e do descaso público, disse: “elas estavam com cupim, mas a prefeitura nada fez .. Se ela tivesse caído para o lado de cá e não o de lá, teria me matado na hora. Meu telhadinho não teria agüentado.
Sim, sim. Agora compreendo o senhor ter baixado a porta e devolvido o espaço ao senhoril. Foi descansar, saborear as refeições ao lado das pessoas queridas, perfumar-se para elas, sorrir para elas e ser cuidado por elas. Teria sido muito triste se a “árvore–coluna” tivesse caído para o lado de cá. Muito triste. Cuidemos, então, para que a outra não desabe sobre nós todos, que sequer a olhamos muitas das vezes, na correria e no sem-tempo do cotidiano. Que permaneça como um símbolo. Símbolo da passagem de alguém como o Seu Tacílio para nos inspirar e nos lembrar de que a beleza e a simplicidade caminham juntas (com sapatos lustrados), quando desejamos encontrar a felicidade.
O senhor fechou a velha porta e abriu novos caminhos, fique com a certeza de ter feito o seu melhor sempre. Sábia decisão. Parabéns! O senhor saiu de nosso convívio, sem aviso, mansa e delicadamente. Saiu tão silenciosamente como quando chegou. Só quem passava por ali, viu o caminhão retirando seus pertences e o último baixar da porta. Privilegiados, que puderam abraçá-lo e despedir-se.
Desejo que, continue a ser muito feliz e que a vida nos promova um reencontro. Sua ausência o tornará mais presente em nosso bairro, em nossa memória e em nosso coração.
Um abraço carinhoso, senhor Otacílio
Marina Zarvos Ramos de Oliveira é personagem do Conte Sua História de São Paulo. Seu Otacílio, também. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte mais um capítulo da nossa cidade. Envie seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung