Conte Sua História de São Paulo: remadas e lições memoráveis na raia olímpica da USP

Candido Leonelli

Ouvinte CBN

No Conte Sua História de São Paulo, o texto do ouvinte da CBN Candido Leonelli, escrito originalmente em 2007, ao completar 60 anos. Hoje, aos 75 anos, Candido concluiu o curso de medicina:

Ontem, no meu aniversário de 60 anos, jantei com a família com direito a presença de quatro gerações: meus pais, filhos e netos. Coincidentemente neste mesmo dia, se completaram 50 anos de Brasil, onde cheguei como filho de imigrante. Minha nova pátria que tudo me ofereceu e onde nossa família se fixou e realizou. Até mesmo a cidadania, por vocação e opção.

Ainda no início da década de 1970 como condição para participar de campeonatos brasileiros de remo e na expectativa de ser convocado pelo Buck, para a seleção, me naturalizei brasileiro. Com direito, dado o porte físico, a ser “ameaçado” de servir na PE. Por ser casado e ter filho, fui dispensado.

Completam-se também 40 anos de remo, praticado de forma ininterrupta. Isto tudo merecia um bom vinho e uma agradável noite, não característica de alguém que acorda às quatro da manhã todos os dias. Assim, ao me deitar, mudei o despertador para às cinco, já planejando um treino mais curto, antes de ir trabalhar no dia seguinte. O Prosecco deve ter sido o responsável por esquecer que hoje quinta-feira seria o primeiro dia de treinamento, combinado anteriormente com o Nadim Thomé no “meu horário”, que ele só aceita por causa da minha intransigência e de seu altruísmo. É o nosso ‘double F’ para Zagreb.

O organismo não esperou o despertador, às quatro acordei com gosto de cabo de guarda chuva na boca, vontade de urinar, que o desenvolvimento natural com a idade da próstata, não ajuda, portanto, retardei em apenas meia hora minha chegada na raia. Ao descer do carro, chuva forte!

Decidir: ficar na raia e tentar partilhar os poucos recursos  — remo ergômetro, e barco escola/tanque — disponíveis, no seco. Ou, voltar para casa e treinar no próprio equipamento. Fiquei na raia.

No vestiário, fazendo meus alongamentos/abdominais diários, obrigatórios de quem operou a coluna, percebi que a chuva já era torrencial. Fé na Teoria de Caetano Nº 2, moldada para responder à famosa pergunta dos amigos leigos: “Você vai remar todos os dias? E quando chove?”. Enunciado: “nunca chove na hora do treino”, o que já me custou muitas saídas da água, totalmente encharcado.

Fui ao barracão do Pinheiros e no caminho observei que todos se preparavam para usar os tanques/barco escola, remo ergômetros e aparelhos para pesos. Peguei o meu skiff e me dirigi, sob olhares atônitos de neófitos remadores para o pontão. Neste momento o Thomé me aguardava estranhando o atraso, reclamando do horário, mas como conversava com nosso técnico na sala do computador, atrás dos armários, não nos vimos.

A teoria se concretizou, iniciou-se um pequeno período de estiagem, que me incentivou a ir para a água. Durou uns poucos minutos e a chuva recomeçou. Nessas ocasiões procuro me manter próximo à margem, pois como bom engenheiro eletrônico, conheço o princípio do “poder das pontas”, para atrair descargas elétricas e que a área de “proteção” é um cone cuja base tem o diâmetro igual à altura.

Nos retornos o conselho é manobrar rapidinho e voltar para a proteção das margens. Bom, lá estava eu no skiff tomando uma “bela” chuva. Os sons internos da raia eram o barulho das manilhas de halteres que remadores de Paulistano, Pinheiros, USP, Corinthians e Bandeirante usavam para aumentar sua força, substituindo o treinamento na água. Externamente o “chiado” de caminhões em alta velocidade na molhada pista da marginal. E no meio disto tudo, eu gozando de uma prerrogativa, que me pareceu um presente, do tipo: o universo conspirou para fazer acontecer!!! A raia olímpica da USP  só para mim.

Durante um treino preguiçoso entre chuvas e estiagens, de 12Km pude aproveitar este oásis incrustado na grande e agressiva metrópole, só para mim.

Na verdade, sem as marolas das lanchas dos técnicos ou a água “batida” de todos os outros barcos, quando com eles dividimos a raia, pois com o passar dos anos, até as “meninas” já são mais velozes, nos obrigando a “dar passagem” e depois equilibrar o skiff sobre a água “mexida”.

A madrugada, fria, chuvosa, foi na verdade uma oportunidade única de sentir, vivenciar esta experiência de ao 60 anos poder aproveitar mais uma hora de puro prazer.

Venho, aliás, insistindo que, nós nesta fase, já não me considero Máster, talvez PHD, devemos agradecer esta dádiva divina, que é a prática de nosso esporte diariamente.Insistimos em competir e nos medir, comparar com outros privilegiados que como nós desfrutam deste privilégio.

Só o fato de lá estarmos nos coloca no universo dos executivos, empresários, funcionários, pais de família de mesma idade e que não praticam com regularidade esportes, em situação extremamente bafejada de sorte, alegria, prazer e saúde. Enfim o Caetano, que alguns ainda chamam o Velho do Rio, remanescente da época em que se remava no Rio Tietê, foi o hoje o Velho da Raia.

A sensação de ocupar este espaço nesta manhã foi muito reconfortante, a exclusividade que me foi proporcionada, completou os festejos de datas tão importantes, fixou em minha memória uma “experiência”, talvez egoísta, mas inesquecível. Um dia que prometia iniciar, com ressaca interna e externa, chuva, vento e frio foi se transformando em uma manhã agradável, intensa de sensações positivas e que permitiu que mais uma jornada de trabalho tivesse continuidade com a disposição e entusiasmo que só uma boa remada pode proporcionar.

Candido ( Caetano ) Leonelli é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Fique atento porque já estamos nos programando para mais uma série especial do Conte Sua História: escreva agora o seu texto,  envie para contesuahistoria@cbn.com.br e vamos comemorar os 469 anos da cidade. Para conhecer outros capítulos, visite meu blog miltonjung.com.br ou o nosso podcast.

Um comentário sobre “Conte Sua História de São Paulo: remadas e lições memoráveis na raia olímpica da USP

Deixar mensagem para Jose luiz Farina Cancelar resposta