Por Maria Lucia Solla
Ouça “De vergonha do meu país” na voz da autora
Sinto vergonha de ser brasileira.
O sentimento foi crescendo, enquanto eu estava distraída. Chegou de mansinho como fazem alguns, e quando me dei conta dele, senti vergonha de perceber que sentia vergonha. Tentei ignorar e pensei: isso é coisa passageira, é dificuldade de aceitar a dificuldade; mas me enganei. Não era coisa passageira, era um sentimento que já tinha raiz e que crescia independente da minha vontade.
Cresci aprendendo a amar a Pátria e a respeitar a autoridade. Comecei em casa, onde respeitar pai e mãe não era opcional. Eu não conhecia outra realidade. Meu pai ditava as regras, e o seu dizer não dava margem para discussão. Ele era autoridade no ninho que mantinha para nós. Eu era a sua filha, morava na sua casa, comia da sua comida, era educada porque ele me proporcionava condição de aprender e de espiar pelas janelas dos livros, para ver o que acontecia nos lugares que as minhas pernas ainda não podiam alcançar.
Não era fácil, mas era assim.
Aprendi a respeitar pai, mãe, irmão, vizinhos, amigos, colegas de escola, professores. Aprendi a falar quando o espaço do silêncio me dava a deixa. Aprendi a ser civilizada, como me diziam os mais velhos.
Aprendi muito também fora de casa.
Observava como viviam as famílias dos meus amigos, e me fascinava perceber que havia diferenças, mas que elas só pincelavam um colorido diferente daquele do meu ninho.
Não nasci em berço de ouro, mas a mim nunca faltou nada. Aprendi a levantar de manhã e a lutar, desbravando o caminho do qual, muito pequena, já percebia o traçado.
Aprendi que se pisasse no pé do outro, era óbvia a necessidade de dizer: foi sem querer; me perdoa.
Aprendi a gostar do meu país, da língua falada aqui e da sua cultura. Cultura de um povo de raça, de garra, de alegria, de música, de festa e poesia. Aprendi que estava entre iguais. Havia os iguais mais iguais e os nem tanto, mas que eu seria sempre acolhida nas voltas dos meus voos mais corajosos por este mundo afora.
O bairro, a cidade, o estado, eram extensão fascinante da casa dos meus pais, e minha curiosidade se aguçava a cada aventura. Já não acreditava mais no Homem do Saco que poderia me levar embora, porque eu já não caberia nele. Eu tinha crescido.
Hoje tenho medo de homens e de mulheres do meu país, e sinto vergonha. Muita vergonha. Um sentimento que cresceu, tomou conta dos meus espaços e se mostra enorme, monstruoso, feio, gosmento, fedido. Sinto medo e vergonha dele.
Não posso deduzir que você sinta o mesmo, mas peço que ao menos pense nisso, antes que seja tarde demais.
Até a semana que vem
Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de língua estrangeira, ministra curso de comunicação e expressão, escreve aos domingos no Blog do Mílton Jung e, antes de mais nada, é brasilera.



