As lições do breve espetáculo dos ipês, em São Paulo

Por alguns dias, São Paulo esquece o cinza. As ruas ganham tons de amarelo, roxo, rosa e branco. Os ipês resolveram florescer juntos, contrariando o calendário e criando um espetáculo improvável para o inverno. Normalmente, cada espécie tem seu tempo: os ipês-amarelos, por exemplo, costumam abrir suas flores por apenas cinco a sete dias; os roxos preferem o início da primavera; os brancos se reservam para o fim de setembro. Desta vez, decidiram se sobrepor, como se a cidade precisasse de um intervalo de cor. E bastou uma fala aos ouvintes, durante o Jornal da CBN, para que nosso WhatsApp fosse tomado pelas imagens captadas pelos moradores da cidade.

O biólogo José Milton Longo, ouvido pela CBN, explica que a surpresa maior está no comportamento do ipê branco, que “se adiantou” um mês e pode até florir de novo em setembro, estimulado pelo calor alternado com frentes frias. A natureza se adaptando, ou, quem sabe, reagindo. A floração simultânea, ao mesmo tempo em que encanta, é também um lembrete de que as mudanças climáticas já afetam o ritmo natural da vegetação.

O curioso é que toda essa beleza tem prazo de validade. As flores dos ipês-amarelos, por exemplo, caem quase na mesma velocidade com que surgem, deixando no chão um tapete que dura mais tempo do que a própria festa na copa. É justamente essa brevidade que nos faz olhar para cima. Se os ipês florissem por meses, talvez nem repararíamos. O que nos prende o olhar não é o volume — é a exclusividade do instante.

Talvez haja aqui um recado para nós, que vivemos num tempo de excesso: mais informações, mais reuniões, mais notificações, mais barulho. Os ipês parecem nos ensinar que atenção não se conquista pela permanência, mas pela raridade. A beleza não está em estar sempre presente, mas em saber quando aparecer.

Por isso, olhe agora. Admire o amarelo vibrante, o roxo intenso, o rosa delicado, o branco raro. Daqui a alguns dias, tudo isso será memória, e os galhos voltarão ao silêncio. Talvez seja essa a lição maior: para chamar atenção, menos pode ser mais — e a vida, assim como os ipês, também tem seus breves momentos de flor.

Conte Sua História de São Paulo: a coruja enorme no muro de casa

Walter José Soares de Lima

Ouvinte da CBN

Moro na Serra da Cantareira, em Vila Rosa, e tenho várias histórias deste lugar maravilhoso que é a cidade de São Paulo.

Aqui, tive a oportunidade de conviver com diversas espécies de pássaros, macacos e até gambás. Sou adestrador certificado pela Federação Brasileira de Animais (FBAA) e tenho dois cães e duas gatas. Certa vez, encontrei uma coruja grande, assustada pela implantação do Rodoanel, pousada no muro de casa. Levei-a para o centro de reabilitação, mas essa experiência me marcou profundamente. Sou grato por viver nesse paraíso.

Me entristece ver grandes chácaras se transformando em condomínios. As pessoas vivem com tanta pressa que nem sempre percebem as belezas naturais ao seu redor – cachoeiras, uma mata robusta, pássaros, insetos e outros animais fascinantes.

Em minhas caminhadas diárias com os cães, descubro algo novo a cada dia. Se fosse psicólogo, receitaria uma boa caminhada pelo bairro para aliviar o estresse, seja pelas ruas das Palmas do Tremembé, Vila Maria, Vila Marieta, Vila Arnoni ou Vila Rosa. Esse é apenas um pedaço do imenso território – um verdadeiro “bolo maravilhoso” – que é São Paulo.

Há um sentimento profundo que mistura amor e carinho: Alimenta corações e constrói relações de grande valor. Cuida de todos como se fossem filhos. Perdoa facilmente os maus-tratos e retribui com delicadeza. Dorme e desperta num ritmo frenético que molda as pessoas. Une povos, acolhe etnias e tribos, sempre de braços abertos. Torna-se um grande palco de sonhos e conquistas profissionais.

Obrigado por existir, São Paulo! É o mínimo que podemos dizer a essa grande metrópole.

Ouça o Conte Sua História de São Paulo

Walter José Soares de Lima é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva seu texto agora e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br e o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

A prepotência humana

Por Nina Ferreira

@psiquiatrialeve

Ilustração produzida pelo Dall-E 2

Queremos comer açúcar e não inflamar nosso corpo nem engordar.

Queremos usar celular o tempo todo e não ter ansiedade.

Queremos estimular o cérebro até tarde da noite e dormir bem.

Esses são só alguns exemplos da nossa prepotência enquanto espécie humana.

Nós nos julgamos muito inteligentes, espertos, tecnológicos, avançados… e ficamos brigando com quem manda – a natureza.

Epidemias, catástrofes naturais, a parte sombria do ser humano que leva a ofensas, fome, guerras… isso tudo prova que quem manda não somos nós – “os grandes pensadores”, “a espécie especial”.

Temos sim algum poder de escolha das nossas atitudes; no entanto, a lei de causa e efeito é certeira e nos obrigará a sentir e viver as consequências de cada ato realizado.

E, para além do que nossa razão é capaz de compreender, existem fatores que não têm “explicação”, são “injustos”, mas ocorrem mesmo assim.

Então, perante essa clara realidade…

Até quando?

Até quando vamos nos desencaixar do que a natureza desenhou pra gente, insistir em fazer coisas fora do adequado e esperar um resultado “nada menos que perfeito”?

Coerência. Falta muito, pra nós, humanos dos tempos de hoje (talvez tenha faltado desde sempre). Não há colheita boa sem plantio de boas sementes, sem cuidado no cultivo, sem obedecer às leis universais.

Eu faço essa reflexão aqui dentro de mim e me pego nessa prepotência diversas vezes – faço um esforço (já que não é nada natural nem prazeroso) pra me corrigir.

Te convido a trabalhar a coerência, se encaixar no fluxo da natureza, agir de acordo com os resultados que deseja obter… Te convido a ser verdadeiramente esperto e estratégico ao caminhar pela vida e, assim, ser verdadeiramente dono de si e feliz.

A Dra. Nina Ferreira (@psiquiatrialeve) é médica psiquiatra, especialista em terapia do esquema, neurociências e neuropsicologia. Escreva a convite do Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de São Paulo: a jabuticabeira do Seu Oseas e dos passarinhos do Campo Limpo.

Oseas Pereira Campos

Ouvinte da CBN

Seu Oseas e a jabuticabeira em foto de arquivo pessoal

Tenho  77 anos. Sou viúvo. Moro no condomínio Interclube, no Jardim Umuarama, no Campo Limpo, zona Sul da cidade. Cheguei em São Paulo em 1972. Cinco anos depois, eu e minha esposa ganhamos uma muda de jabuticaba. Eu plantei em um vaso e continuamos a regá-la durante 15 anos.

Quando chegou 2018, plantei a jabuticaba no pomar do condomínio que moro e já está dando frutos.

Fico muito alegre de ver os sabiás, os bem-te-vis, o casal de João de Barros, pardais que comem os frutos todos os dias. Minha felicidade é enorme ao ver que o plantar da árvore frutífera alimenta os pássaros. E a mim, também. 

Gostaria mesmo que minha esposa estivesse aqui para ver a jabuticabeira, como está linda e como atrai os passarinhos do bairro. 

Oseas Pereira Campos é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você também a sua história, envie seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade ouça o meu blog miltonjung.com.br ou o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Conte Sua História de São Paulo: sinto falta dos sabiás

Por Fernando Ceravolo

Ouvinte da CBN

Foto: Mílton Jung

Sinto falta dos Sabiás. Aqui, onde hoje moro, em uma praia ao norte da ilha de Santa Catarina, eles não existem. Uma pena!

Há os Bem-Te-Vis, os Tico-Ticos, os Joões-de-Barro que cantam também, mas não como os Sabiás. E os inúmeros Pardais, que fazem enorme barulheira quando em grupos – vieram de Portugal, introduzidos no inicio do século passado, pois antes não existiam no nosso País. Virou praga!

Também, há as Gaivotas e Fragatas que voam imponentes e maravilhosamente, mas não cantam. Como os Urubus no seu planar majestoso, totalmente mudos. Mas Sabiás não há. Não sei o motivo, talvez não gostem de praia como eu. Uma pena…

Essa é a época do ano do acasalamento dos Sabiás, cantando forte e longamente para atrair as fêmeas, no raiar do dia e ao cair da noite, alegrando as nossas almas. Mas aqui não os ouço, só sinto a sua falta.

Os Bem-te-vis cantam e é gostoso de ouvir também. Sei que eles adoram água, e talvez por isso estejam aqui e não os Sabiás. Talvez?

Os Joões-de-Barro cantam como se fosse um grito. Gosto de ver esses pássaros construtores bicando o barro e voarem aos seus ninhos em construção, instalados em lugares incríveis, tais como, por exemplo, nos semáforos das ruas da cidade, tapando uma das luzes. Mas não cantam como os Sabiás!

Sou da cidade de São Paulo, onde vivi por anos e escutava o cântico dos Sabiás, há muitos lá, ecoando pela cidade. Uma melodia apaixonada, harmônica e romântica, com notas longas e agudas, expressando a sua necessidade de amor. Acalmava-me ouvir e me despertava para os lindos dias da primavera, com a floração dos Ipês e das flores espalhadas pelos canteiros da cidade, com os seus cheiros e dias luminosos e quentes.

Os Sabiás são os arautos dessa maravilhosa estação do ano, do reinicio da vida.

Sinto falta dos Sabiás! 

(texto escrito originalmente para o Blog do Cera)

Fernando Ceravolo Junior é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio —- e dos sabiás, também. E você? Quando vai enviar a história. Escreva agora para contesuahistoria@cbn.com.br. Se quiser ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br ou o podcast do Conte Sua História de São Paulo

Setembro amarelo: a natureza nos possibilita a esperança que, ausente, ofusca a amplitude da vida

Por Simone Domingues

@simonedominguespsicologa

Foto: Priscila Gubiotti

Nas últimas semanas, ao andar pelas ruas de São Paulo, nossos olhares eram capturados para a beleza das flores amarelas dos ipês, que se destacavam em meio ao cinza da cidade. Uma rápida associação de cores me conduziu ao Setembro Amarelo, uma campanha criada, em 2014, pela Associação Brasileira de Psiquiatria e pelo Conselho Federal de Medicina, com o objetivo de conscientizar a população sobre os fatores de risco para o suicídio e alertar sobre a importância do tratamento adequado para os transtornos mentais, como estratégias de prevenção.


Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), anualmente, cerca de 1 milhão de pessoas perdem a vida em decorrência do suicídio. No Brasil, os números apontam para 30 mortes diárias, sendo que para cada uma, aproximadamente outras 6 pessoas serão afetadas pelas consequências econômicas, sociais e emocionais provocadas por essa perda.


Os transtornos mentais, como a depressão ou transtorno afetivo bipolar, representam cerca de 96% dos casos de morte por suicídio, reforçando a tese de que o diagnóstico e o tratamento adequado são fundamentais como medidas preventivas eficazes.


Infelizmente, alguns estigmas ainda persistem quando o assunto é saúde mental, dificultando a identificação dos fatores de risco e perpetuando ideias distorcidas sobre essa condição.

É preciso falar sobre saúde mental.


É preciso levar informação capaz de promover a identificação dos transtornos mentais, tornar os tratamentos conhecidos, criar apoio emocional e possibilitar a esperança, a mesma que em sua ausência ofusca a percepção da realidade, tornando-a estreita diante da amplitude da vida.


As causas para o suicídio são multifatoriais, e alguns fatores podem agravar os riscos, como uso do álcool e drogas, que aumentam a impulsividade e a agressividade, a falta de amigos e pessoas mais próximas, e o acesso a meios letais, como armas de fogo.


Por outro lado, algumas atitudes podem ajudar as pessoas a superarem as ideias suicidas, como uma conversa sem rodeios sobre suas intenções e uma sinalização genuína de interesse pelo que ela está passando. Há a necessidade, nesses casos, de procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica e, em situações mais urgentes, conduzir a pessoa a um Pronto Atendimento ou chamar o SAMU (192).


A intenção sobre suicídio não deve ser mantida em segredo, em hipótese alguma, devendo-se buscar ajuda profissional especializada. Muitas vezes, essas ideias aparecem em forma de frases, que soam como brincadeiras de mau gosto ou mesmo em atos mais impulsivos e inconsequentes, como atravessar uma rua sem olhar e contar com a sorte.


Por vezes, viver se torna doloroso e até mesmo muito difícil, mas a natureza, com a sua magia, nos ensina que é possível superar as adversidades: mesmo em tempos áridos e secos, o ipê precisa perder todas as suas folhas; sobram seus galhos; e isso é necessário para abrir espaço para o que vem a seguir. E, assim, ele surge, exuberante com suas flores amarelas, possibilitando que a vida se renove.


O suicídio não é um ato individual. É coletivo! Porque atinge a toda sociedade, quer sejam pais, filhos ou amigos.


Sejamos envolvidos na luta pela vida, de modo que nossas ações contribuam para que outras pessoas possam florescer.

Setembro amarelo de 2021: é preciso agir! O suicídio pode ser evitado.

Saiba mais sobre saúde mental e comportamento assistindo ao canal 10porcentomais

Simone Domingues é Psicóloga especialista em Neuropsicologia, tem Pós-Doutorado em Neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das autoras do canal @dezporcentomais no Youtube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung

De emburramento

 

Por Maria Lucia Solla

 

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Quando eu era menina, ficava ‘emburrada’. Não falava com ninguém e ficava de ‘cara feia’. E não era só eu. Éramos uma legião de crianças emburradas. Longe de ser moda, era nossa expressão de descontentamento. Não vamos nos esquecer de que quando eu era ‘menina, o ‘emburramento’ era o máximo de expressão de revolta permitida a nós, os pequenos.

 

Não falava à mesa, não dava palpite, jamais interrompia quando um adulto falava, estudava e tirava notas excelentes, porque era o que se esperava de mim, e pronto. Meu pai dizia que eu não fazia nada além da minha obrigação. Ele tinha razão, e nesse ponto eu me dava bem porque sempre gostei muito de estudar. Agora, a parte do ficar quieta era a mais difícil. Engolia em seco o tempo todo, ‘tirava letra’ das músicas, e cantava, cantava, já que não podia falar. E escrevia. Diário, carta e desabafo. De lá para cá, vocabulário e regras podem ter mudado e evoluído, mas o homem.…

 

E fazer o quê, emburrar? Enredar pela via da crítica virulenta? Aquela do eu estou sempre certo, e você errado? Falar o tempo todo do descontrole e da selvageria que assola o planeta? E olha que não sei da missa um terço!

 

Tem solução? Está tudo errado? Não. Apesar do descontentamento individual e geral, nada está errado. A Natureza segue o seu caminho, de ação e reação, apesar de nós, e da nossa agressão a ela. Só isso. Há algum tempo, nós a violentávamos e assaltávamos, na calada da noite. Hoje, à luz do dia.

 

Selvagens, brincamos de cidadãos. Temos sempre uma palavra de crítica ao outro, e espantosamente sabemos a receita para todos os problemas. Do outro. Filho mata mãe, mãe não fica atrás. Rico come bem, estuda e saqueia o semelhante. Pobre passa fome, não estuda e faz o mesmo. Apesar do preconceito que devasta qualquer possibilidade de entendimento, de acordo e paz.

 

Tem juiz que se degrada, condenado que se recupera. Tem justiça e seu avesso. Em todo lugar, em todo posto. A qualquer preço.

 

E eu? Se tenho receita? Vivo como posso, me aninho como fazia quando criança , me acomodo na solidão que se acomoda em mim, reconheço no espelho a tristeza nos sulcos que não havia ali, e entendo que tenho ainda muito a aprender.

 


Maria Lucia Solla é professora de idiomas, terapeuta, e realiza oficinas de Desenvolvimento do Pensamento Criativo e de Arte e Criação. Escreve no Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP: pássaros, cheiros e sabores da cidade

 

Por Elisabeth Cury

 

 

Nasci em São Paulo e aqui estou até hoje. São anos e anos!

 

Vou puxar pela memória, buscar acontecimentos. Mas não vou puxar muito, não. Drummond dizia que o que for preciso de esforço para lembrar é que não foi importante.

 

Sei de uma coisa: desde muito cedo me deixei impressionar pelos sentidos. Foi meu jeito de captar o mundo, a vida, esta cidade. Então vai ser fácil.

 

Eu morava na periferia, quando ainda havia trechos de mata – a Atlântica – no caminho para o centro, para a “cidade” como se dizia.. Procurava ver, ouvir, sorver os aromas, saborear, pegar, vendo tudo que podia com minhas próprias mãos. – sentir.

 

Que céu! O ar transparente: de dia, quando havia sol, nuvens espetaculares, sobre azul, com formatos que eu queria sempre associar a bichos, gente, coisas, como fazem as crianças. À noite, estrelas no azul-marinho. Nessa hora, meu pai, que fora pescador marítimo em sua terra, me dava aula de céu – o que era estrela, o que era planeta, constelações e o nosso Cruzeiro do Sul.

 

O cheiro da terra molhada, quando chovia. Delícia! Natureza. Nas trovoadas, minha mãe punha-nos, a mim e a meu irmão, debaixo de uma mesa, embrulhava a tesoura que usava nas costuras em um pano, toda a casa ficava fechada. Ninguém podia fazer nada, até que o mau tempo passasse. Então podíamos sair. Era hora de ver a enxurrada em ruas e terrenos de bairro que principiava.. Era pôr o pé na água, sem ninguém falar às crianças que podia dar leptospirose. Era muito divertido molhar os pés, soltar barquinhos de papel.

 

Revoada de pardais no amanhecer e no entardecer. É que nos fundos do meu quintal havia um riozinho, ainda limpo naquele tempo, e, na beirada, uma touceira de bambu, opulenta. Era dormitório de um sem número de pardais. O dia acordava com uma cantoria inesquecível. À tardinha, eles iam chegando. O movimento deles nessa hora era curioso: não chegavam e iam quietinhos para o abrigo noturno. Não. Em bandos incontáveis, pousavam e logo saíam em revoada, descreviam um círculo e voltavam. Outro bando partia. Assim ia até ir escurecendo e eles se aquietando em seus lugarezinhos.

 

Os parentes que iam em casa – nesse tempo usava-se receber e fazer visitas – desfrutavam desse acontecimento. Era até uma atração turística da minha casa. Além dos pardais, os bem-te-vis, os sabiás, as rolinhas e o arrulho dos pombos da comadre, vizinha, que mantinha um pombal.
Perfumes. Principalmente o de gardênia, que minha mãe chamava de jasmim-do-cabo e que ela conservou em nosso jardim por muito tempo, quase sempre.

 

Sabores: de uva, azedíssima e de mexerica, já que havia nove pés no quintal. Eu só tinha uma pena: eu queria que elas dessem no verão, que eu ia aproveitar mais. Elas ficavam prontas no outono, quando já estava frio.

 

Era a São Paulo da garoa, muitos meses do ano em cinza. Que frio!… Acho que é por isso que eu estou sempre pronta para o inverno, foi meu princípio, foi como conheci o meu lugar no mundo.

 

Saudades dessa São Paulo!

 

O Conte Sua História de São Paulo vai ao ar aos sábados, logo após às 10 e meia da manhã, no CBN SP. A sonorização é do Cláudio Antonio. Você pode contar outros capítulos da nossa cidade, escrevendo seu texto e enviando para milton@cbn.com.br

Somos felizes, mas fazemos de conta que não sabemos

 

Por Milton Ferretti Jung

 

Muitos ou,quem sabe,muitíssimos de nós somos felizes e,sei lá por que razão,fazemos de conta que não sabemos disso. Estou,confesso com lisura,entre essas pessoas que sempre encontram algum motivo para se queixar da vida. Faço,particularmente,uma força danada para me corrigir. Foram tantos,nos últimos dias,os episódios trágicos que lotaram os meios de comunicação,que me fizeram,no mínimo, repensar minha maneira de ser.

 

Creio que nada pode ser mais terrível do que as forças malignas da natureza. Supertufões, como o Haiyan,que atingiu com violência descomunal o arquipélago das Filipinas,armado de ventos que chegaram a 278km/h e de ondas gigantes,talvez tenha matado 10 mil pessoas,fora as que,se não perderam a vida,ficaram sem suas casas, ameaçadas por doenças e necessitando do socorro de inúmeros países. No Brasil,não sofremos com catástrofes provocadas por furacões,tsunamis e outros que tais,capazes de infernizar, com alguma regularidade, outras regiões do planeta.

 

Menos letais são os problemas enfrentados pela gente pobre brasileira,especialmente aquelas que se obrigam a erguer os seus casebres em terrenos que ficam à margem de rios ou córregos,sujeitos a verem suas residências paupérrimas serem inundadas em consequência de chuvaradas, episódios que ocorrem mais do que uma vez por ano. Exemplo disso está nesta manchete do jornal gaúcho Zero Hora:”Chuva mata,isola e deixa desabrigados no Estado”.

 

Refiro-me ao que aconteceu no início desta semana no Rio Grande do Sul. Olho as fotos publicadas pela mídia e fico a imaginar o desespero dos que perderam,mais do que as suas casinhas,todos os seus eletrodomésticos adquiridos a duras penas. Não bastassem os danos causados pela mãe natureza (ou madrasta natureza), em meu estado,não há semana,principalmente as que tenham feriados prolongados,esses que começam nas noites de quintas-feiras e se estendem até o final dos domingos,em que não ocorram acidentes fatais, nas vias urbanas e nas estradas,envolvendo toda espécie de veículos. Nesse domingo,colisão entre dois carros,um deles com oito pessoas,matou cinco jovens com idades entre 16 e 24 anos. A maioria das vítimas retornava de uma festa. Mas os óbitos não ficaram nisso:nesse final de semana,registraram-se mais 17 mortes,em acidentes de trânsito,no Rio Grande do Sul.

 

Diante desses fatos que acabei de relatar,sou obrigado a me perguntar até quando vou inventar motivos para me queixar da vida. Eu sou feliz. E sei disso!

 


Milton Ferretti Jung é jornalista, radialista e meu pai. Às quintas-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung (o filho dele)