Amor por ônibus faz mecânico ter 360 filhos

Por Adamo Bazani

CÉLIO HONÓRIO DE JESUS

“Tá vendo cada ônibus desse? Pois é, são como um filho para mim. Sei de tudo o que eles precisam, sei do detalhe e do macete de cada um. Os trato com intimidade. Se aparece no final do dia com um risquinho qualquer ou um barulhinho diferente, mesmo que seja de uma porca mal ajustada, eu sei”.

Assim, Célio Honório de Jesus Júnior, 37, o Macarrão, gerente de manutenção do grupo de empresas de ônibus Barão de Mauá, Januária e EAOSA (Empresa Auto Ônibus Santo André) recebeu a reportagem dentro da garagem, em Mauá, na Grande São Paulo. E o que ele falou, não foi papo apenas, não. Percorrendo os três enormes pátios das empresas, mostrava orgulhosamente cada veículo que estava parado na revisão. Dava de cabeça as fichas técnicas e contava particularidades de cada ônibus, mesmo sendo muitos do mesmo modelo. Não somente a parte mecânica, mas a paixão de Célio Honório pelo ramo, faz com que ele saiba até mesmo a história de cada carro.

“Esse nós compramos zero quilômetro. Esse aqui dava uma trabalheira na suspensão e tivemos de fazer uma adaptação de improviso na mão, esse veio da empresa do grupo lá de Manaus” – contava com orgulho enquanto caminhava de peito aberto pela grande oficina.

Tamanha memória e conhecimento de cada detalhe é paixão pelos ônibus mesmo, pois ele é responsável por mais de 360 veículos, ou como chama, mais de 360 filhos, 360 histórias.

O início de Macarrão, como prefere ser chamado, foi de luta, perseverança e humilhação. Apesar da pouca idade, Célio está há mais de 20 anos na mesma empresa. Começou aos 13, enquanto fazia curso técnico no Senai (Serviço Nacional da Indústria). Apesar de estar estudando uma formação técnica Macarrão começou como varredor na garagem, em 1986.

“Eu era novo, franzino e tinha motorista e outros funcionários que de sacanagem, me humilhavam. Eu limpava um canto da garagem, via gente sujar de propósito. Varria o pátio todo, amontoava sujeira no meio para depois colocar no lixo e tinha motorista que passava com o ônibus em cima só pra espalhar tudo de novo. Era humilhação, mas eu seguia firme”

Seguia firme, por necessidade e por um ideal. Macarrão seria pai-precoce. Hoje, com a filha de 23 anos, logo será avô.  Sempre quis ter uma família e a assumir sem ajuda de ninguém. “Por isso, pra mim não tinha humilhação, gozação ou trabalho que fizesse me desanimar”.
Dois meses depois de entrar como varredor, foi chamado para ser auxiliar-mecânico. “Aí eu descobri o que era trabalhar numa empresa de ônibus de fato e de verdade. O diesel entrou nas veias”.

Ele ajudava na limpeza das máquinas e no torno mecânico na oficina da garagem. Depois de 4 meses, foi trabalhar no setor de montagem e ajustagem. A garagem, que congrega as três empresas, é uma das mais conhecidas do ABC Paulista por promover reparos e alterações nos ônibus. Dependendo da necessidade da frota e das condições dos itinerários, ainda feitos em vias de difícil tráfego na cidade de Mauá, os veículos têm a suspensão elevada. Carros simples viram articulados e articulados viram convencionais. Veículos de motores traseiro ganham a configuração de motor  dianteiro. Peças são literalmente fabricadas na empresa. A oficina das três empresas é um verdadeira linha de produção.

A entrevista foi realizada num ambiente típico, entre cheiro de graxa e diesel, movimentação e correria de mecânicos com peças, barulho de marteladas, maçaricos,  e enormes veículos articulados sendo envelopados com papel especial para a pintura na funilaria.

Quando fez parte da montagem e da ajustagem, Macarrão teve a oportunidade de enxergar o coração e as veias vitais de um ônibus e isso simplesmente o fascinou. “E trabalhar nisso é casar com a profissão. Não tem dia, nem hora, nem final de semana. Deu problema, deu enchente, deu quebra de veículo, temos de fazer. Quantos vezes tive de ir de madrugada na garagem pra ver se havia peças disponíveis”

Com pouca idade, mas com larga experiência de profissão, Macarrão viu grandes mudanças no setor de transportes e é enfático ao dizer: “Hoje o mecânico tem de ser instruído. Não basta ter força física e mexer com graxa. Tem de estudar. O tempo passa e os veículos estão cada vez mais difíceis de mexer. Tudo é eletrônico, não há mais bombas e sim computadores de bordo que fazem injeção de combustível e lubrificantes. Mecânico agora tem de estar com a prática da graxa em dia, mas tem de saber ler, se atualizar e até ter noções de outros idiomas” – relata Macarrão, que a cada dois meses faz cursos se especialização em autopeças, montadoras e encarroçadoras.

Ajustando-se ao tempo

Na época que Macarrão começou, em 1986, os chassis eram em sua maioria Scania 113 e LP 1111 ou 1113 da Mercedes Benz. “Eram os fusquinhas dos ônibus. Um araminho resolvia o problema. Hoje, se conserta um ônibus na mão e no computador”.

As más condições das vias são apontadas pelo gerente de manutenção como um dos principais problemas em relação a custos. “Além de exigir mais do motor e do sistema de frenagem, a suspensão dos ônibus vem detonada. Tem ônibus que temos de adaptar suspensões mais fortes, senão, a cada semana é um jogo que tem de trocar”.

A empresa comprou no início dos anos 90 uma série de veículos Volvo B 58, articulados, carrocerias GLS ou Mega Bus da Ciferal. Macarrão explica que adaptações tiveram de ser feitas para os ônibus da marca sueca superarem os desafios das ruas da Grande São Paulo. “Até o fosso de manutenção preventiva, onde ficam os mecânicos sob os ônibus estacionados em plataformas estratégicas, teve de ser alterado”.

Se por um lado, as tecnologias dos ônibus evoluíram, proporcionando maior conforto aos usuários e exigindo mais perícia dos funcionários, desde o que faz a faxina até o gerente geral, por outro lado, na visão do gerente de manutenção, o perfil de trabalhadores mudou muito. “Antes, a equipe era disposta a trabalhar. E olha que o esforço físico era bem maior. Hoje, tem gente que entra aqui já pensando em quando vai sair. Infelizmente, há pessoas que não tem o mesmo carinho com a profissão, como eu aprendi a ter. Sem contar que muitas jovens que começam a trabalhar, já vêm de um lar conturbado, sofrem com problemas de vícios, etc” – conta Macarrão.

A empresa teve de criar um departamento de psicologia devido ao estresse da profissão e até mesmo a problemas externos, como a violência urbana, drogas e alcoolismo.

“É realidade, não há porque esconder. Não adianta falar que hoje o clima nas garagem é só flores porque não é. A garagem é um reflexo da sociedade. E um reflexo que é sentido muito até na qualidade de serviço. Quando iniciei no trabalho, ainda as pessoas não tinham tanto medo, não eram tão oprimidas pela violência e vícios como agora.”

O retrato da sociedade

Os relatos de motoristas mais antigos mostram um lado mais romântico. Já os relatos de profissionais antigos, mas que ainda estão atuando, mostram uma realidade que exige mais profissionalismo, mas que têm menos paixão. Além disso, como na sociedade, as garagens têm seus membros com diferentes tipos de instrução, renda social, visão do mundo, local de origem, cultura, religião, etc.

“Hoje, dá pra se confiar em pouca gente na rua……Nas garagens, há sistemas que monitoram os funcionários. Hoje, a diferença de renda é grande entre as pessoas. Nas garagens, há os que ganham o mínimo e há altos cargos de gerências de grupos inteiros …. A diversidade religiosa aumentou muito….Hoje, temos aqui imagens de santo e salas com rádios evangélicas no sistema de som ….Hoje, há pessoas que moram perto e nem se conhecem….Em algumas garagens, tem pessoas que nem se cumprimentam….Quer um termômetro de como está nosso dia a dia? Olha pra dentro de uma garagem” – aprofunda-se

E como no cotidiano, há histórias tristes e alegres.
Macarrão até hoje não esquece de ver um borracheiro morrendo, vítima de parada cardíaca na sua frente, na garagem. “Isso foi em 2004, o considerava muito. Tanto é que a área de borracharia da empresa leva o nome dele: Dorival Urios Pinto”.

Um fato curioso, que virou presente de família, aconteceu em 2008 mesmo. Um papagaio invadiu a garagem. Todo mundo queria pegar o loro gritador. Até que ele entrou num ônibus. O veículo tinha acabado de ser limpo, estava brilhando. Não deu outra, o animal sujou tudo. Ninguém conseguia pegar o bicho, até que Macarrão o domou e acabou levando o loro para a casa.

A garagem fica perto de uma área verde extensa, chamada Gruta, com parte de mata atlântica ainda. “Com certeza o animal fugiu de uma casa, foi atraído pela área, mas antes, quis dar uma volta de ônibus. É um papagaio busólogo” – brinca.

Célio Honório, o Macarrão, aprendeu muito na profissão, e diz que para sobreviver no mercado de manutenção de ônibus, a dica é sempre se atualizar: “Jamais vou para de estudar”.

Adamo Bazani é repórter da CBN e busólogo. Toda terça – mesmo de Carnaval – registra histórias do transporte de passageiros aqui no blog.

9 comentários sobre “Amor por ônibus faz mecânico ter 360 filhos

  1. Parabéns! Acredito realmente no q foi colocado!
    Mais também acredito q para sentir e saber o q realmente representa, tem q viver no cotidiano, e isto poucos fazem!
    Falo do q vejo e acompanho! Parabéns mais uma vez!

  2. Ótima reportagem. Qual a dúvida sobre o que ele sabe ou não sabe? Greio que ele deve fazer mágica. Os ônibus do grupo são muito velhos e muitos “importados” de outros estados. 1abç

  3. a reportagem é muito boa como sempre acho uma história de vida muito legal boa p/muitos jovens se empenharem e ir atras dos seus objetivos quanto ao trabalho só deus sabe como ele consegue colocar os onibus p/rodar pois os onibus são muito velhos eo piso de maua simplesmente não existe mesmo assim parabens e boa sorte

  4. Ótima matéria! Não sabia que existia busólogo que trabalhasse numa emissora de rádio tão importante assim e ainda mais se tratando da CBN que é praticamante só notícias. Eu também o meu foco principal é a notícia acima de tudo e não apenas postar ônibus bonitos. Fico muito feliz em ver que os busólogos não parem de aparecer por qualquer tipo de mídia. E continue fazendo seu ótimo trabalho de divulgar a busologia nesse blog!

    Abraços-Nerilton (SP Urbanuss)

  5. Amigo Adamo bazani

    Excelente matéria, gostaria que vc pudesse fazer uma matéria sobre os trolebus de são paulo tem um grupo chamado Respira São Paulo que se reune todos os terceiros sábados no memorial do imigrante na estação Bresser e que apontam problemas e soluções e isso tem dado uma boa credibilidade junto ao poder público e as empresas envolvidas.
    Se puder conheça também a comunidade no orkut na qual estamos com um novo desafio, fazer desta comunidade o DEFESA DO TROLEBUS em uma grande enciclopédia do trolebus e contamos com mais de 400 pessoas em nossa comunidade. Contamos com sua presença e amizade para elaborarmos uma ótima parceria
    abs
    Marcos galesi

Deixe um comentário