Deslizando na arrogância

 

Esqui

Esquiar sempre foi considerado tarefa impossível para mim. Imaginava minha falta de habilidade e a neve lisa conspirando contra meu orgulho. Exceção feita ao surfe, que ao menos servia para tomar banho após a rebentação, os esportes radicais nunca foram meu forte. Lá em casa – entenda-se por Porto Alegre – quem era adepto às práticas mais arriscadas sempre foi o caçula, meu irmão Christian. Desde dirigir Kombi até andar de skate. Causava-me inveja vê-lo sair com os amigos para o Parque Marinha do Brasil, onde havia uma pista daquelas que mais se parecem com uma gigantesca e tortuosa piscina de cimento. Minha preferência era pelos esportes com bola, o futebol e o basquete, especialmente – apesar de que encarar alguns grandalhões no garrafão bem que poderia ser caracterizado como algo bastante radical.

Dito isso, fica claro que jamais pensei ser capaz de ficar em pé sobre aqueles dois pedaços de prancha usados para deslizar na neve, quanto mais deslizar na neve com os dois pedaços de prancha. Por isso, a viagem a uma estação de esqui, no Chile, estava sendo encarada como um desafio. Afinal, se você não esquia o que fazer por lá? Comer, rezar e amar. E beber, claro.

No primeiro dia de aula, a companhia dos dois filhos tornou a tarefa ainda mais constrangedora. Enquanto eles já sinalizavam habilidade natural, eu mais parecia um bebê cambaleante em seus primeiros passos. Pior, o olhar deles não era de solidariedade. Era de pena. Não abandonei meu propósito porque tirar as botas de esqui seria ainda mais complicado. Não sei se você já teve oportunidade de calçá-las, se não, pense que são ideais para presos em liberdade condicional. Impossível ir muito longe com aquilo nos pés.

Algumas horas depois, unhas do pé ardendo e uma comichão subindo as pernas comecei a me entusiasmar, apesar da insistência do treinador em franzir a testa e sacudir a cabeça enquanto me assistia. Aos berros de “cunha, paralelos, cunha, paralelos” ele tentava me convencer de que era possível fazer certo. Estar em pé e descer as primeiras rampas sem despencar para mim era suficientemente certo.

Foram oito horas de aula divididas em três dias. O suficiente para superar parte de meus medos, andar para um lado e outro da pista e ter a ideia de que esquiar era possível. Nem mesmo calçar as botas era mais problema, apesar da unha do pé dar sinais de que a situação ficaria preta, literalmente. Convidado por amigos aceitei ir mais alto, usar uma pista um pouco mais desafiadora para minha (in)experiência. Foi incrível a sensação proporcionada pelo domínio do equipamento, o controle da velocidade – “cunha, cunha” -, a possibilidade de mudar de direção conforme a posição das pernas e meu desejo. E de repente: um tombo espetacular deixa meu braço fora de seu lugar de origem e com uma dor que só foi maior no orgulho perdido.

Poucos dias de esqui são suficientes apenas para você aprender que a prepotência jamais será perdoada. Na primeira ilusão de que você domina alguma habilidade, a realidade o desmente. O tombo é inevitável, a dúvida é a dimensão dele. Quanto maior a soberba, maior o prejuízo. O que, convenhamos, não é preciso arriscar-se na montanha de neve para descobrir. Basta viver.

8 comentários sobre “Deslizando na arrogância

  1. Milton, se notar, em todos os esportes os gestos naturais, na verdade tem que ser aprendidos.
    É assim no tênis, no futebol, etc
    A questão aqui é o quanto o erro na aprendizagem pode acarretar de consequências.
    Melhor ter experimentado.

  2. Eu é que não me atrevo mais a certas aventuras
    Ja tentei esquiar na neve, imaginando que “fosse semelhante” esquiar na água
    Ledo engano!
    Resultado:
    Tb me dei mal e com joelho inchado e o pulso da mão direta contundido.
    A neve para mim é linda maravilhosa, mas prefiro ficar somente admirando
    No meu caso é mais seguro!

  3. COMO NA LUTA O PRINCIPAL É SABER APANHAR PORQUE BATER ATÉ QUE É FÁCIL ( MAS, TAMBÉM CANSA ). ACREDITO QUE VOCÊ JÁ ESTÁ PREPARADO PARA A PRÓXIMA ESQUIADA COM MAIS DESENVOLTURA E NENHUMA CONFIANÇA EM EXCESSO .
    NA VIDA, COMO SUA OUVINTE DE MUITOS ANOS NUNCA PRESENCIEI ARROGÂNCIA , MAS A FIRMEZA DE UM MESTRE.

  4. Milton, é como no futebol quando o artilheiro perde um gol feito a gente logo diz: essa até eu fazia. Ou quando um goleiro toma um frango a gente logo tira sarro e diz: essa até eu pegava. Mas quando a gente é o personagem principal ai tudo muda de figura. A autoconfiança as vezes não nos deixa ver o perigo. É igual aquela criança que teima em colocar um prego no buraco da tomada. Todo mundo fala, não faz isso não que vc vai tomar um choque. Enquanto não tomar um susto não sossega. E como todos nós temos um pouco de criança dentro da gente as vezes nos arriscamos sem medir as conseguências. Mas as vezes atravessar uma rua pode ser mais fatal que esquiar na neve. Boa recuperação mestre.

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