A viagem (arrumando o bagageiro)

 

Por Sérgio Mendes

 

Estava tudo certo e nem faltava mais descobrir o caminho. Ele se formava na nossa frente com as estradas abertas décadas atrás. Não sei muito bem como se fazia naquele tempo sem um GPS, mas o meu pai não parecia preocupado com caminhos e se ele não se preocupava, não nos preocuparíamos nós! Chegaríamos em quatro dias porque ele seria o único a dirigir na estrada, e decidimos que pararíamos todas as noites para dormir, seguindo a viagem somente com a luz do dia.

 

Este era o plano.

 

Por que será que a prática sempre teima em não ler os planos que a gente faz? 
Eu já nem pensava mais naquela fechadura, meu café fez efeito e ao que parece era só nivelar a glicose para a completa recuperação dos neurônios e eles venceriam a batalha. Venceram!?!
O que não significava que ela não estivesse lá, e mal grudada na porta da nossa máquina de chegar em casa. Significava apenas que algum lugar do meu cérebro resolveu não pensar mais nela. De quieto que estava permaneci e não comentei sobre o acontecido com ninguém. Nunca fui mesmo dado a boatos e não seria justo naquele dia que começaria!

 

Vejam que nem deu o tempo de um café com pão e a sensatez já tinha rumado para longe de mim outra vez.
Quando voltei pra nossa casa o cenário era outro. Todos já estavam de pé lavando o rosto ou procurando o que não queriam esquecer de levar. O meu pai entre uma coisa e outra me pediu que ajudasse a minha mãe a arrumar as malas no bagageiro. Partiríamos logo depois que os demais tivessem tomado café.
Imaginei o trailer de um filme comigo acomodando-as uma a uma bem juntinhas, como se elas e porta-malas tivessem sido feitos um a silhueta das outras. Hum!

 

Helenita, a irmã mais nova de minha mãe chegou logo em seguida, trazendo seu pequeno farnel de roupas. Ela também era uma dos mosqueteiros e iria com a gente morar no Mato Grosso. Já sabíamos disso, mas eu não entendia o motivo. Ela sempre foi muito chegada a nós, até pela diferença de idade que a separava de suas irmãs. Nós estudamos juntos na quarta série e com Raimundo, o mais novo de todos e terceiro mosqueteiro, éramos como se fossemos irmãos ou primos.

 

Ela vir conosco não tinha uma explicação que soubéssemos, mas tinha a anuência de todos nós os pequenos que simplesmente delirávamos com ela perto outra vez.

 

Depois dela, uma a uma as malas foram aparecendo e logo eu estava cercado por um mar de sem rodinhas, mais sacolas e outras quinquilharias. Cada uma embrulhada por uma recomendação de seu proprietário.
Seguido ao falatório, mal acabavam de me entregar e partiam rumo à cozinha de vovó.

 

Recado dado, me vi o único naquela casa e com todas aquelas trouxas percebi que não ajudaria ninguém, seria ninguém quem me ajudaria.

 

Nunca subestime a capacidade que temos de acumular tranqueiras.
Restava então levá-las até o carro parado lá fora.

 

Nem precisei de muito tempo pra perceber que lá não caberiam todas. O povo superestimou o espaço na cangalha do pangaré e afora as roupas, sapatos e demais adereços pessoais que facilmente caberiam em duas malas generosas, inventaram de levar uma infinidade de sacos e outras coisas que eu nem desconfiava de onde pululavam, mas entendi que o recado era que pretendiam que todas chegassem no Mato Grosso. E o portador, o carro amarelo ali na frente. 

 

Completa falta de cabimento!

 

Um verdadeiro despropósito, mas por que eu tinha feito outros planos para ocupar boa parte do espaço no porta-malas com coisa muito mais importante do que aquele monte de sacos cheios até a boca do que eu não fazia a menor idéia! E como eu era o único que já tomara café e a incumbência das malas ficou mesmo foi por minha conta e risco, resolvi que a conta delas era grande demais e o risco só de quem as entregou a mim. Eu estava ali sozinho e agora era o rei daqueles pacotes.

 

Por meus planos muito mais importantes, desconfiei que alguns deles não iriam. Seguramente ninguém daria por falta e uma meia dúzia foi parar nos fundos da casa onde nunca foram encontrados. Pelo menos não que eu tenha ficado sabendo.

 

Creiam, não fazia isso pensando no conforto de nós viajantes montados no burro fugido. Muito menos imaginei em aliviar o peso que o pobre carregaria.
Não, não! A minha conta era outra.

 

Desde que cheguei para aqueles dias de férias, tinha o firme propósito de que meu teclado viria conosco e eu costumava ser fiel aos meus propósitos. Ainda que parecesse que eu teria que deixa-lo e que estivesse disposto a comprar briga pra que ele fosse, ele não caberia no porta-malas.
Mas adivinhem?!?

 

Ele foi.  E o entrevero realmente aconteceu mais tarde, pois nem desafiando as leis da física aquilo caberia dentro do bagageiro. Como eu disse, ali não tinha cabimento suficiente.
Dito e feito. E a briga foi das boas! Mas foi brigada quando já não dava mais pra se desfazer dele como veremos mais adiante.

 

Bem, do devaneio e adivinhações à ação. Logo eu estava socando pacotes e malas que não pude esconder no fundo do quintal. A cada uma que eu conseguia acomodar no bagageiro, as chances para o meu teclado diminuíam e no fim a única maneira de ele ir seria dentro da cabina junto conosco, onde já não entraria mais nem um pensamento.

 

Aperta daqui e de lá, sobre o banco ou no vão das pernas? Em nenhum lugar aquele lindo trambolho parecia se encaixar. Não sem que dois de nós seguisse sem as pernas ou sem a cabeça.

 

Foi então que usando a minha sempre precisa régua imaginária calculei que entre amputar dos viajantes uma parte ou outra, havia uma brecha e foi essa mesma que aproveitei. É que apesar de pequenos, nós que viajaríamos atrás já não nos acomodaríamos bem sem aquela caixa que sozinha tomava quase dois terços do banco. Então coloquei a régua para funcionar e consegui a proeza de um cálculo que possibilitou o piano de foles viajar bem perto de nós. Mas não sem um quê a mais de desconforto, claro.

 

Que ideia tosca a de acomodar-se bem!

 

Definitivamente cabeças rolariam. Só de leve é certo, mas teriam que rolar. 
Não importa! Coloquei-a ali mesmo. E com isso de uma vez, eu o rei decretei que dois de nós poderia manter a cabeça na viagem, mas ela deveria inclinar-se levemente para frente e o meu pai perderia a visão do espelho retrovisor. E tenho dito! 

 

Total, acomodar-se já era coisa que não aconteceria naqueles dias.
Antes de todo mundo fui eu quem tive o vislumbre dos acontecimentos nos próximos capítulos, naquela primeira sensação de dentes mastigando chicletes quando abri a porta, que de verdade tinha se transformado na resignação do que estava por vir.

 

Fazer o quê? A vida é assim mesmo, não é?
E ademais, ficar olhando para trás nem é tão bom. Eu tinha que garantir o futuro de um grande músico para o Brasil, com o meu teclado que precisava antes disso conhecê-lo junto comigo, mesmo à custa de uns poucos dias de desconforto divididos por todos nós.

 

Mas apesar de todo cálculo e aritmética de bagageiros que eu aprendi em algum filme, ali também o trambolho resultou apertado e como disse, de certa forma tirava a visão do retrovisor. Só que eu estava decidido, tinha um propósito e não o abandonaria como era de meu costume. Mesmo que as minhas irmãs protestassem aquele seria o lugar dele e ponto final! (vírgula só se fosse o meu pai quem objetasse).

 

Estava terminada a novela das malas! Eu o rei, decretei.

 

O momento depois delas propiciava o registro das caras e reações, ainda que a excitação nos turvasse a todos o juízo sempre escasso a aventureiros diante de dias como os que se formavam bem na nossa frente.
Recordo-me pouco e na verdade o que tenho são recortes de rostos e algumas reações características mais comuns de cada um.

 

Meus pais estavam brigados. Não lembro bem por que, mas devia ser pelo mesmo motivo de sempre. Helenita apreensiva com a saída de casa, mas da reação dela a aquela novidade eu também me recordo muito pouco. Acredito que no fundo ela estava contente em vir conosco. Certamente nós estávamos.
Não demorou muito e um por um, voltaram abastecidos e rebustecidos da casa de vovó sem desconfiar que parte das encomendas que me encarregaram foram para detrás, mas detrás da casa. Eu costumava mesmo ter sorte naquele tempo!

 

 Parece que voltaram só para se despedir do nosso canto e sem olhar para o carro e para aquela coisa enorme no console traseiro, faziam o mesmo caminho de volta  para despedirem-se dos nossos avós.
Tamanha a emoção, ninguém se deu conta da caixa. 

 

Cercaram os dois velhinhos em pé frente ao portão, enquanto eles distribuíam as bênçãos e palavras de carinho. Eu tinha outra vez ficado por último, encarregado de conduzir o carro de onde ele estava até lá. Todos já se abraçavam e riam disfarçando a comoção da partida.

 

Dali de dentro e aplicando conhecimento de manobrar aprendido com meus tios, pude ver a turma toda e esta é uma imagem congelada que guardo daquele dia. Fiz jus à lição aprendida. Engatei o carro sem tirar o pé da embreagem e sem mudar da primeira marcha fui chegando perto da pequena multidão devagar e sem assustar ninguém.

 

Outra vez o carro assumiu ares de F1.

 

Saí e fui como todos abraçar meus queridos avós que me olhavam como se soubessem de tudo. A despedida era um roteiro escrito pra mim!

 

Cheguei até eles enquanto o restante dos aventureiros se posicionava, cada um no seu lugar. Minha mãe e meu pai na frente, e as meninas perfiladas no banco de trás por primeira vez esbarravam os cocurutos na caixa ali no alto. Me fiz de desentendido e nem lhes dei atenção, mas preocupado não me lembro mais do que disseram meus dois queridos anciãos ao me abraçar. E o único recordo deles naquele dia é o que fotografei na memória, lá dentro do carro ainda antes de provar minha habilidade na direção.

 

Eu nem desconfiei que aquela seria a última vez que os veria.
Com as cabeças inclinadas e sem dar um piu, nós detrás nos pegamos apertados, unidos como nunca estivemos. O clima denso no carro só foi quebrado pelo resmungar da minha irmã mais nova irritada com o desconforto.

 

Sem dar muita bola pra ela que era dada a resmungar de tudo, continuamos todos unidos e contritos.
Fecharam-se as portas e partimos.

 

Ps: A fechadura até aqui comportava-se como se nosso encontro não tivesse passado de um devaneio de fome. Ela ainda cedeu a abrir e fechar-se duas vezes para outros sem que se ouvisse palavra. Mas eu sentia um cheiro de menta no ar.

Leia o texto “O corcel” de Sérgio Mendes publicado no Blog do Mílton Jung

2 comentários sobre “A viagem (arrumando o bagageiro)

  1. Sérgio,

    A vida como ela é. Dei muita risada agora. Passou um filme na minha cabeça, passei por situções muito parecidas em uma Brasília bege de Ilha Solteira/SP à Três Lagoas/MS.

    Detalhe, 4 irmãos no banco de trás em uma Brasília que não tem porta-malas. Ou tem? Risos.

    Tem sim. O porta-malas da Brasília fica na frenet do carro e é apertadíssimo.

    Me lembrei de uma viagem que meu avô teve a infeliz idéia de dar um filhote de pato para cada irmão na vigem de volta. Advinhe onde os patos vieram?

    Pense no perreio!

  2. Sergio,

    Esse segundo está demais!
    Visualizei você arrumando esse bagageiro..e dando um jeito de despachar as sacolas discretamente ali pro quintal da Vó.. Ri muito!
    Delícia de texto.
    Já ansiosa pra ler a continuação!

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