Eu sou um cara da p****!


Diego Felix Miguel

Foto de Mo Eid no Pexels

Prezada leitora e prezado leitor,

Por favor, não me julgue precipitadamente por conta do título que escolhi para este texto. Na verdade, utilizei essa frase porque foi ela que marcou o exato momento em que recobrei minha autonomia após um longo período deprimido.

Eu estava assistindo à televisão à noite, pouco antes de dormir, como costumo fazer corriqueiramente. Não consigo lembrar exatamente o que estava assistindo, porque também uso a programação fútil para pensar sobre a vida até o sono chegar.

Naquela noite, porém, eu estava em outro momento da minha saúde mental, “enxergando sem meus óculos escuros” e analisando com mais profundidade a minha trajetória: de onde vim, o caminho que percorri, onde estou e para que direção estou caminhando.

Foi nesse momento de intensa reflexão que, como num grito que brotou da minha alma, surgiu o título que nomeia este texto.

Realmente me senti assim, como se cada poro da minha pele exalasse essa euforia que brotou da leitura das minhas conquistas — e não falo aqui apenas das conquistas materiais. Aliás, essas nem sempre representam um aspecto relevante para nomear nossas vitórias.

Falo do caminho que trilhei diante dos preconceitos e discriminações que sofri na infância e na adolescência; das violências coniventes em ambientes que, teoricamente, deveriam me proporcionar segurança e proteção, como a família sanguínea, a escola e os ambientes religiosos… Lugares que considero essenciais nessa fase da vida.

Lembro-me do primeiro emprego, dos cursos subsidiados por políticas públicas que me propiciaram uma profissão e da universidade que cursei. Por incrível que pareça, a academia também foi um ambiente hostil — não por conta dos meus colegas, mas por alguns poucos professores que reforçavam em seus discursos que “viado não seria ninguém na vida”.

Tenho amigos desse período que trouxe comigo até hoje e puderam ver de perto — e vibrar com — minhas conquistas acadêmicas, profissionais, materiais e, principalmente, pessoais: da pessoa que me tornei.

Em um mundo de trabalho competitivo, onde as relações de poder sempre nos desafiam, quando não queremos jogar esse jogo de vaidades, somos subestimados e inferiorizados. Sob essa pressão, a sensação de ser uma farsa ou uma pessoa intelectualmente desonesta fere nossa essência e reforça o lugar que alimenta a depressão, sabotando nossa autopercepção.

É nesse ponto que a reflexão se aprofunda. Chegar aos quarenta anos estudando os processos socioculturais do envelhecimento não é uma tarefa fácil. A nossa autonomia — um dos aspectos mais preciosos para um envelhecimento ativo — é frequentemente ferida e sabotada pelas vaidades alheias e pela insegurança que coloca em xeque quem realmente somos.

Felizmente, o autocuidado me proporcionou uma leitura mais distanciada desse momento. O tratamento medicamentoso, o acompanhamento nutricional e a atividade física foram essenciais para essa catarse.

Talvez não seja o caminho para todas as pessoas, mas, sem dúvida, existem muitas outras possibilidades que podem proporcionar essa mesma oportunidade.

É impressionante como os aspectos biopsicossociais, que tanto estudamos na Gerontologia, são perceptíveis na prática. Na vivência. Agora entendo o poder envolvente dos discursos das minhas professoras idosas: elas falam de ciência por meio de suas vivências pessoais. Um laboratório vivo. Que privilégio o meu ter essa consciência e honrar cada oportunidade que vivencio junto a elas.

Envelhecer não é fácil, ainda mais para pessoas que sofrem o impacto da desigualdade social, da iniquidade de acesso e da exclusão. Por isso, estou longe de generalizar. Ao falar da minha experiência, pretendo que, minimamente, possamos refletir:

O que cabe a nós?

Será que podemos representar e inspirar oportunidades para que todas as pessoas tenham vivências plenas? Acredito que sim. Ao recuperar minha voz e minha autonomia, meu papel é ser esse laboratório vivo. Utilizar a ciência da gerontologia e a minha história — do cara que superou o que disseram que ele seria — como ferramentas para que a luta por equidade e oportunidade continue a florescer.

Não pretendo aqui depositar mais responsabilidades sobre as pessoas que sofrem com a desigualdade; afinal, essa virada de chave não depende apenas delas.

Quais políticas públicas precisamos alcançar? Como os movimentos ativistas podem incorporar a longevidade em suas pautas?

Vamos conversar sobre isso?

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG-SP. Mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung

Deixe um comentário