Trinta anos para não serem esquecidos – parte II

 

Os anos de 1950 a 1980 foram marcantes para a indústria de ônibus no Brasil. Na segunda parte desta história, as mudanças que trouxeram mais conforto e segurança para os passageiros

Primeiro Modelo articulado produzido em série

Por Adamo Bazani

Foi a partir dos anos 1970 que a relação entre empresas de ônibus, montadoras e fabricantes se tornou mais estreita. As empresas traziam os problemas e ajudavam nas soluções ativamente.  Muitas delas começaram a fabricar os próprios ônibus ou componentes. A Scania, nos chassis B 110 e BR 115, lançou a suspensão a ar, uma exigência de operadores que transportavam em regiões de difícil acesso e asfaltamento quase inexistente. A empresa Itapemirim faz um dos primeiro protótipos de ônibus trucado, tribus, ou de três eixos, sobre um monobloco Mercedes Benz.

A preocupação dos órgãos reguladores em relação ao conforto dos passageiros, por pressão de usuários e diante de muitos acidentes e problemas de saúde provocados na operação dos ônibus, era mais presente nos anos de 1970. A Resolução 448, de 1971, que determinou índices máximos permitidos para a emissão de ruídos, foi um marco importantíssimo. A buzina do ônibus só poderia emitir até 104 decibéis, o barulho do motor de até 185 cavalos estava limitado a 80 db e os modelos superiores a 185 cavalos, a 92 db.

Assim como Itapemirim e Mercedes, com o Tribus, em 1972, mais uma mostra de que a década seria a da parceria. No mesmo ano foi lançado no Salão do Automóvel o modelo Dinossauro, em duralumínio, parceria entre a Viação Cometa, Ciferal e Scania. O ônibus seguia o padrão dos GM americanos, e trazia itens inéditos para o conforto de passageiros e motoristas, como melhores visibilidade e posicionamento dos bancos, duralumínio na lataria e motor mais potente.

Em relação a legislação, 1973 foi um ano que trouxe uma das regras mais importantes em benefício aos passageiros: o seguro obrigatório para usuários dos transportes em caso de acidentes. Além disso, tornou-se obrigatório o tacógrafo: um aparelho com discos que registra os dados da viagem, como velocidade, horário e forma de o motorista dirigir.

Seria inocência dizer que essas resoluções partiram apenas da boa vontade dos governantes. Surgiram, sim, depois de muitas pessoas terem perdido a vida e prejudicado a saúde em acidentes, que poderiam ser evitados.

Em 1974, para acompanhar o sistema nacional de transportes por passageiros e garantir o cumprimento de todas as regras, o Departamento Nacional de Estadas de Rodagem – DNER criou a Diretoria do Transporte Rodoviário, intensificando a fiscaliação das viagens de ônibus nas estradas.

Com a urbanização surge o sistema de corredores

Inauguração do sistema segregado de Curitiba, inovação que foi exemplo para o mundo.Foi na década de 70 que se assistiu ao nascimento das metrópoles no Brasil. Mais do que o trânsito e o aumento no número de passageiros, a lama e as estradas ruins eram os desafios para os pioneiros do setor. Foi neste momento que surgiram os sistemas de integração de modais e de novos de serviço de ônibus.

Em 1974, destaque para a criação do sistema de ônibus rodando em corredores exclusivos, em Curitiba – primeira cidade brasileira a adotar este formato. O projeto urbanístico da capital paranaense priorizava o transporte público em detrimento do privado. O modelo, que opera até hoje, foi referência para a criação de corredores BRT (Bus Rapid Transit) em todo o mundo, como o bem sucedido Transmilênio, de Bogotá, na Colômbia.

Em São Paulo, no ano de 1975, foi criado o primeiro serviço de integração tarifária entre metrô e ônibus. A integração se dava na Estação Ana Rosa com ônibus da CMTC. O Metrô em São Paulo havia sido inaugurado em 14 de setembro do ano anterior.

Demanda maior exigia ônibus maiores. Nasceu assim a era dos articulados. Em 1976, a CMTC testa o primeiro trólebus nesta configuração Em 1978, é produzido em série o primeiro ônibus articulado do Brasil. Um Caio Gabriela sobre chassi Scania B 111. Era um veículo de 18 metros, com motor potente, de 296 cavalos. Os rodoviários também entram na onda dos articulados, mas para este tipo de serviço, o modelo não durou muito. Também em 1978, a Empresa de ônibus Pássaro Marrom, testa pela primeira vez no Brasil, um Marcopolo III, chassi Scania B 11, na linha São Paulo / São José dos Campos.

A urbanização presente e a exigência de profissionalização do setor de transportes, levaram o poder público a regulamentar a construção de ônibus urbanos. Uma das grandes iniciativas para oferecer conforto e segurança foi o Projeto Padron, desenvolvido pela GEIPOT, o grupo de estudos da Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes – em 1975. Este estipulava uma série de especificações para que os fabricantes de ônibus nacionais, como dimensões de carroceria, uso de pneus radiais, suspensão pneumática, transmissão automática, direção hidráulica, melhor aproveitamento do salão de passageiros, largura de portas mínima, menor distância dos degraus em relação ao solo e redutores de emissão de gases poluentes.

Os primeiros modelos do projeto Padron começaram a circular entre os anos de 1980 e 1981 como testes. Na época, se importou um modelo da Alemanha, que tinha passado por um processo de regulamentação das dimensões e características dos ônibus urbanos produzidos localmente. O projeto no Brasil se deu com a participação, além do GEIPOT, de faculdades, encarroçadoras, fabricantes de chassi e empresas operadoras.

Mais segurança e banheiro a bordo

Ainda em relação a ônibus urbano, para atender melhor a demanda crescente dos anos 1970, vários lançamentos se destacaram. Dois bons exemplos: o Caio Gabriela II (um dos maiores sucessos da encarroçadora, em 1976), que apresentava para-brisa panorâmico e janelas de linha reta com maior visibilidade; e o Haragano Tribus Urbano – até então os modelos de três eixos eram apenas rodoviários – lançado pela Nimbus, em 1977, e testado pela primeira vez pela Viação Canoense, no Rio Grande do Sul.

No mesmo período, novas regras eram impostas ao transporte rodoviário. Por sugestão das empresas Viação Cometa e Itapemirim, o Governo Federal obrigou que os ônibus rodassem nas estradas com farol aceso, mesmo de dia. Em 1974, estipulou-se o tipo de sanitário que os ônibus deveriam ter e os banheiros químicos começaram a ser importados dos Estados Unidos. Dois anos depois, o DNER determinou que deveria haver banheiro a bordo nas viagens com mais de 75 quilômetros ou duas horas.

Quase no fim da década, em 1978, criou-se a mais extensa linha de ônibus da América Latina: Atlântico-Pacífico, da Viação Pluma, entre Rio de Janeiro e Santiago do Chile, com percurso de 4.120 km e 64 horas de viagem. Apesar da distância e do tempo, a linha tinha bastante demanda.

Era uma época em que viajar de ônibus era muito mais barato que viajar de avião, diferentemente de hoje quando a passagem aérea custa quase o mesmo preço da rodoviária em ônibus executivo.

Combustível alternativo: álcool e gás natural

Ônibus a álcool testado no Brasil nos anos 70A palavra de ordem, atualmente, é diminuir a emissão de gases poluentes. Mas os estudos e testes com combustível alternativo aos derivados de petróleo ocorrem no Brasil desde a época áurea da indústria de ônibus. Na transição da década de 70 para a de 80, quando se falava em combustível limpo, as referências eram o álcool e o gás natural.

Em 1978, a Mercedes Benz do Brasil apresentou o chassi 1315, o primeiro urbano do País produzido em escala movido a gás. Muitos veículos com este combustível,foram usados pela CMTC – Companhia Municipal de Transportes Coletivos de São Paulo – entre os anos de 1980 e 1990.

O álcool dominava a preferência dos estudos e testes e várias empresas apresentavam modelos com este tipo de combustível. Em 1979, a General Motors lançou um motor a álcool para ônibus, de 6 cilindros e 170 cavalos. Uma das experiências mais marcantes foi neste mesmo ano, quando a Viação Urubupungá, de Osasco, testou um Monobloco Mercedes Benz O 364 com álcool aditivado. O veículo, prefixo 1070, rodou por alguns meses, na linha intermunicipal Ponte Pequena X Barueri. Foi sucesso para época, mas após alguns anos de uso, começou a apresentar problemas na operação, como menor rendimento em relação aos outros ônibus a diesel convencionais.

Em 1980, foi a vez da Incabasa Encarroçadora colocar um ônibus sobre um chassi americano, marca Detroit, movido a álcool.

Até hoje, ônibus a etanol são testados no Brasil, que, apesar do pioneirismo, por falta de investimento público e privado, está em desvantagem na comparação com países da Europa e América, onde os passageiros são há muito transportados com modelos movidos a álcool.

Como pode-se ver, os anos compreendidos entre 1950 e 1980 foram marcantes e decisivos para a configuração do atual sistema de ônibus, tanto em operação como em fabricação. Muitas das inovações, testadas quase que artesanalmente, hoje fazem parte da rotina dos passageiros seja em linhas urbanas seja em rodoviárias. E a indústria brasileira de ônibus é o que é hoje, certamente por causa dessa época.

Nada mais justo que trazermos um pequeno resumo desta fase da história dos transportes coletivos no Brasil  Sim, apesar do grande número de fatos que trouxemos, ainda assim é um pequeno resumo. Diversas iniciativas, que não foram citadas por falta de dados históricos, foram tomadas. Muitas em pequenas oficinas, e garagens, soluções que apareceram sem nome, mas que hoje trazem o mínimo de conforto aos passageiros e motoristas.

Como dissemos no início desta série, ainda há muito o que fazer para o transporte se tornar ideal, mas o Brasil está a frente de muitas indústrias. O sistema de ônibus só não se desenvolve mais por falta de iniciativa política, pois tecnologia provamos que somos capazes de criar. É preciso investimento e, acima de tudo, gerenciamento, o que permitiria que ônibus que saem com qualidade das fábricas continuem a oferecer qualidade. E para haver conservação e manutenção desta qualidade, a palavra certa é fiscalização.

Adamo Bazani é repórter da CBN, busólogo e escreve às terças-feiras, no Blog do Mílton Jung.

3 comentários sobre “Trinta anos para não serem esquecidos – parte II

  1. Pois é, amigos, as coisas costumam demorar um pouco para aontecer no Brasil. O transporte urbano passou a ser um grande problema com o crescimento das cidades que se transformaram em metrópoles a partir da II Guerra Mundial, que provocou um grande surto de industrialização no Brasil.
    Mas os esforços governamentais só surtiram efeito a partir da criação do Geipot, no fim da década de 1960. As Regiões Metropolitanas foram reglamentadas somente em 1973…
    Nos anos 70, então, a crise do petróleo tornou o transporte coletivo uma prioridade real – buscando economizar divisas, procurou-se desestimular o transporte individual – e os estudos do Geipot estavam prontos para serem executados. Todas as capitais tiveram seus planos diretores de desenvolvimento e de transportes elaborados com o apoio do Geipot e, posteriormente, da EBTU. Readequação dos sistemas, projeto Padron para as carrocerias e chassis, metodologia de cálculo para planilha tarifária e financiamento para renovação de frota trouxeram grandes melhorias para os usuários, mas a inflação acelerada dos anos 80 trouxe nova crise para o setor. Bem, acho que a partir daqui é para a próxima semana, né? Abraços e parabéns pela reportagem.

  2. A EMTU na porta do O-364 é a primeira, extinta pelo Maluf quando era governador.

    Achei a matéria sobre os testes com o ônibus a álcool no Arquivo Digital de “Veja”. Fiquei surpreso ao ver que o problema central é o mesmo da experiência iniciada em 2008 no corredor do ABC: o uso do álcool depende de dois aditivos que não são produzidos no Brasil. E não o são até hoje, até onde nós saibamos.

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