Por Diego Felix Miguel

Confesso que a frase que dá título a esse texto me abalou bastante e, agora, ao escrever essas linhas tento elaborar qual profundidade esse desconforto alcança relacionando-a a um contexto muito específico.
Ela foi proferida por uma mulher transgênera de 70 e poucos anos que mora no extremo leste da cidade de São Paulo enquanto contava que para chegar no auditório onde estávamos, às nove horas da manhã, teve de acordar de madrugada e enfrentar um transporte público pouco confortável, como esperado (e naturalizado) para quem vive por aqui. Sabemos que essa é uma realidade para milhares de pessoas, principalmente aquelas que trabalham diariamente para conseguir sustentar a si e sua família; mas, naquele contexto específico, a presença dessa nobre senhora era voluntária, movida por uma força de vontade que muito me inspirou quando a conheci naquele dia.
O evento onde nos conhecemos foi organizado pela Prefeitura de São Paulo em virtude do dia 28 de junho – data que celebramos mundialmente o Dia do Orgulho LGBTQIA+ e reuniu profissionais, especialistas, líderes de movimentos sociais e autoridades, para conversar sobre questões relacionadas ao acesso de pessoas idosas LGBTQIA+ a serviços de cuidados de longa duração como Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) — pejorativamente conhecidas por “asilos –, Centros-dia — um centro com foco no cuidado de pessoas idosas que precisam de auxílio para executar suas atividades de autocuidado durante o dia — e Centros de Acolhida Especiais para Idosos — um serviço voltado às pessoas idosas que demandam de um acolhimento temporário por estarem em situação de alta vulnerabilidade social.
Sem dúvida, a organização desse seminário foi louvável, haja vista as demandas complexas que envolvem essa realidade, infelizmente quase imperceptível para a maioria das pessoas. O lugar que ocupei no evento foi o de palestrante, considerando a minha trajetória de estudo, vivência e pesquisa nessa área.
A senhora em questão, que foi a grande inspiradora dessas linhas que escrevo, estava ali ocupando um espaço seu, por direito, e que muito além que qualquer estudo ou pesquisa, pode falar com grande propriedade sobre “o que é ser uma mulher idosa transgênera que mora no extremo leste do município de São Paulo” e, em algum momento da sua vida, pode ter necessidade de acessar algum desses serviços — logo, essa foi a oportunidade de expressar seus receios e percepções sobre o atendimento.
Pouco antes do início das atividades, ela estava sentada na primeira fila, próximo a mim, e percebi que comentava com as pessoas da organização do evento sobre tudo que enfrentou naquela manhã para chegar até ali. De forma sabiamente majestosa, posicionou-se dizendo algo relacionado à importância da sua presença naquele lugar sem mesmo ter sido nomeadamente convidada e, diga-se de passagem, que era um espaço majoritariamente ocupado por pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras – em conformidade com o gênero que foi atribuído ao nascimento –, e com menos idade que ela.
Trocamos um olhar de acolhimento que me fez lembrar o real sentido de estarmos aliados, provocando inquietações para que as políticas públicas e serviços possam, de fato, ter como base a equidade, considerando as diferenças que compõem a nossa identidade e que nos condicionam a ocupar um lugar social bem específico.
Logo nesse contato inicial, fui provocado a pensar: como tornar acessível as políticas e serviços, se não com a representatividade em suas diferentes realidades e contextos? “Nada para nós, sem nós”, um slogan conhecido na luta pela inclusão do movimento anticapacitista, contra o preconceito e discriminação de pessoas com deficiência.
Do mesmo modo, não há como falar de acesso de pessoas idosas LGBTQIA+ sem a presença delas e com a organicidade de suas falas construídas a partir de suas experiências. Não há como desconsiderar a interseccionalidade que envolve a construção identitária, a partir de ideários machistas, racistas, xenofóbicos entre tantos outros estereótipos, preconceitos e discriminações que se relacionam gerando um contexto ainda mais complexo e desafiador.
Movido nessas reflexões, apresentei minha palestra e se formou uma mesa com os demais colegas para conversarmos sobre os aspectos que estávamos trabalhando no evento.
A senhora foi convidada a estar com a gente no palco e, logo nos primeiros minutos de sua retórica, com uma voz embargada, num misto de emoção e empoderamento, fala repetidas vezes, com uma pausa dramática, essencial para dar ênfase à complexidade em questão: “Não sou velha, sou usada”.
À primeira vista associei essa frase a uma negação da velhice e a resistência que ainda temos em nos colocarmos na condição de velha ou velho, por conta dos mitos e estereótipos relacionados à incapacidade, improdutividade e apequenamento da pessoa idosa, fatos hoje referenciados e associados à forma de preconceito conhecida como Idadismo.
Mesmo a comunidade LGBTQIA+ está distante da pauta do envelhecimento e velhice e, infelizmente, muitas pessoas idosas que em tempos remotos lutaram para que usufruíssemos de nossos direitos hoje, estão submetidas ao esquecimento e ao abandono, muitas dessas ainda sofrendo um apagamento de suas histórias por desconstruírem sua identidade, tentando manter minimamente sua segurança num ambiente hostil junto daqueles que não têm a menor compreensão sobre as questões relacionadas a gênero e sexualidade, principalmente as que divergem do padrão socialmente estabelecido.
Confesso que perdido em minhas ideias me senti um tanto quanto envergonhado. A questão ali não era exatamente sobre idadismo, apesar de dialogar com ele.
Fui buscar no “google” interpretações sobre “o que é usado” e uma delas me chamou a atenção: adaptado ou condicionado (a algo); habituado, acostumado.
A partir dessa leitura, consegui identificar a profundidade do meu estranhamento com a frase: Nós, pessoas LGBTQIA+ estamos condicionados a ocupar um lugar social imposto/permitido socialmente? Ou podemos ocupar os lugares que realmente queremos?
Partindo de um lugar que experiencio, de conforto e certo privilégio, ainda, sim, sei que não é fácil transgredir um sistema que formam corpos e identidades socioculturais por um olhar heterocisnormativo – uma perspectiva que padroniza pessoas a partir de um modelo centrado na heterossexualidade e cisgeneridade.
Consigo lembrar de vários momentos que não me senti seguro com minha orientação sexual e tentei forjar uma condição que não era exatamente a minha, anulando parte da minha identidade, mesmo que de forma temporária, em troca de uma aceitação, apoio ou uma falsa sensação de segurança. Em vários momentos fui usado por essa ideia centrada numa normalidade.
Penso então que para uma mulher transgênera de uma geração bem anterior a minha, a vida não tenha sido nada fácil. Para resistir e poder seguir viva e existindo socialmente, foi usada por esse sistema, subordinada a ocupar espaços sociais que ampliaram sua vulnerabilidade e exposição à violência. Ainda assim, como num processo de resiliência e resistência absurda, com uma força muito maior do que possamos imaginar, buscou estratégias para transformar essa realidade superando uma expectativa de vida que lhe é atribuída – que não sabemos ao certo se é de 35 anos de idade, mas temos certeza que é muito menor que os 72 anos atribuídos a pessoas cisgêneras – caminhando entre as fissuras de sistemas conservadores, perversos e violentos. Marcou sua presença e deu a visibilidade necessária para sua existência e demandas.
Estar naquele momento, ocupando um espaço de visibilidade enquanto uma mulher transgênera idosa a torna uma grande mestra, permitindo-se mais uma vez ser usada socialmente para ilustrar uma realidade que muitas pessoas ainda insistem em invisibilizar, silenciar ou relativizar. Essa senhora promoveu a geratividade, “passando o bastão” de seu legado para todos nós que estávamos ali, cúmplices de seu apelo.
Será que nessa atenção e toda energia investida ao longo de uma vida, para ser usada e ao mesmo tempo ressignificada socialmente, ainda resta tempo para se atentar a um corpo envelhecido, uma rede de suporte social diminuída e uma invisibilidade acentuada por ser uma pessoa LGBTQIA+ e idosa?
Para mim e para várias pessoas que ali estavam essa senhora foi a grande protagonista desse encontro, perpetuando essa inquietude de uma frase tão simples, mas ao tempo densa. E no meu caso, posso dizer sem sombras de dúvida que fui afetado, transformado por suas palavras, e que estas se tornarão eternas em minha trajetória.
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
Precisamos falar sobre isso! O primeiro de muitos textos.
Beijo