O decreto que ameaça milhões de ítalo-descendentes

A colônia italiana está em polvorosa — ou, como diria a Zia Olga lá dos altos de Caxias do Sul, in subbuglio. Ela sempre me recebia com fartura: abraço apertado, comida farta, vinho à mesa (mesmo que pela idade não me coubesse tal prazer) e aquele sotaque carregado de afeto e história. Hoje, se estivesse viva, certamente estaria indignada com o que se desenha no horizonte dos ítalo-descendentes.

Não faltam motivos. O recente decreto-lei nº 36, proposto pelo governo da Itália, pretende restringir o direito à cidadania por sangue (jus sanguinis) apenas a filhos e netos de italianos nascidos em solo italiano. Se aprovado como está, esse novo critério cortará o vínculo jurídico direto de milhões de descendentes, incluindo grande parte dos brasileiros que herdaram a italianidade com afeto, não com carimbo de cartório. Afinal, o grande fluxo migratório aconteceu ainda no século 19. Somos, na maioria, bisnetos, trineto, tataranetos — descendentes de um tempo de esperança e travessia.

Tomo a liberdade de compartilhar a origem do Ferretti que carrego no sobrenome — honestidade que permitirá a você, caro e cada vez mais raro leitor de blog, julgar esse texto considerando os vieses que influenciam minha escrita. Veio de Ferrara, na Emília-Romagna, e desembarcou no Brasil em 1897. Vitaliano Ferretti — meu bisnonno — passou por Minas Gerais, antes de chegar ao Rio Grande do Sul onde casou-se com Elvira e teve onze filhos. Entre eles, minha avó Ione. Essa linhagem me basta para afirmar: sou italiano, mesmo sem passaporte europeu. Nunca entrei com pedido de cidadania. Minha relação com a Itália se alimenta das viagens que faço, das lembranças de família, da música, do idioma que tento aprender e da honra de ter recebido, no ano passado, o título de Cavaliere Dell’Ordine Della Stella D’Italia, concedido pelo presidente Sergio Mattarella.

Entendo, por isso, a frustração de milhares de famílias brasileiras que vivem há anos no limbo consular, à espera de exercer um direito historicamente reconhecido. É uma legião. Un sacco di persone que preserva, em suas casas, as festas, os sabores, as orações e a língua herdada dos antepassados. Gente que se sente italiana — não como pose, mas como identidade.

O governo italiano, por meio do ministro Antonio Tajani, líder do Forza Italia, afirma que o objetivo do decreto é combater fraudes que teriam transformado o processo de cidadania em um negócio lucrativo. Mas há uma visão distorcida nesse argumento: punir coletivamente, por causa de irregularidades pontuais, é caminho curto para a injustiça. Críticos apontam que a medida é discriminatória, desrespeita a Constituição italiana e rompe um elo cultural construído por gerações.

Em vez de encurtar o fio da história, seria mais eficaz aprimorar os mecanismos de controle e punir os que burlam as regras — sem penalizar quem apenas quer reatar os laços com suas raízes. O decreto, na prática, exclui milhões da possibilidade de reconexão com a cultura que os formou. É como fechar a porta da casa onde ainda vivem as vozes dos bisavós, suas receitas, sua fé, sua língua, sua memória.

O texto ainda será debatido no parlamento italiano e já encontra resistência, inclusive dentro da própria base governista. Do lado de cá do oceano, a comunidade ítalo-descendente segue em vigília. Porque o que está em jogo não é apenas um documento — é o direito de seguir pertencendo à história de onde nossas famílias vieram.

Participe: encontro discute efeito do decreto Tajani

Inscreva-se (de graça) e participe do encontro que discutirá o efeito do decreto que limita a cidadania italiana e prejudicará milhões de ítalo-descendentes, no Brasil. O jurista Walter Fanganiello Maierovitch, o Conselheiro do CGIE (Consiglio Generale degli Italiani all’Estero) Daniel Taddone e Giuliana Patriarca Callia, tradutora juramentada e diretora da AEDA, estarão reunidos no dia 29 de abril, a partir das 19hs, no auditório do Colégio Dante Alighieiri, em São Paulo.

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Um comentário sobre “O decreto que ameaça milhões de ítalo-descendentes

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