Ouço os meninos rindo enquanto tento dormir.
Havia um tempo que este barulho não soava de forma tão agradável. Ambos trabalham e, em tempos normais, um deles só volta no início da noite e o outro sequer vem para a casa — para a nossa casa, porque ele já tem lugar próprio. Com o confinamento autoimposto, dispostos que estamos em ajudar a conter o avanço do Sars-Cov-2, voltamos a ocupar o mesmo espaço há cerca de três semanas. Agora, um do lado do outro, todo o dia e todos trabalhando à distância. Temos dividido muito bem a mesa que reúne nossos computadores, que se transformou em estação de trabalho —- retomando uma prática que iniciamos quando só eu e a mãe trabalhávamos e eles brincavam diante da tela.
À noite, fora do expediente, eles compartilham jogos, textos e vídeos. E se divertem do seu jeito. Como deito mais cedo, por madrugar todos os dias da semana, é da cama que me delicio com as gargalhadas que dão, os comentários divertidos que fazem e os diálogos às vezes sem nexo que acompanho, pois tratam de realidades que entendo pouco — entendo o mínimo para saber que fazem parte do mundo deles.
Saber que eles estão por aqui me dá um certa segurança, mesmo que estejamos todos inseguros com a ameaça à saúde. E que já sejam bem grandinhos para cuidarem deles próprios.
Já não são mais crianças, apesar de ainda olharmos para eles com olhos de pai e de mãe, que precisam estar atentos para o que acontece com cada um, o que passa na cabeça e no coração e quais as angústias e ansiedades que atravancam o caminho nesta hora. Fazemos um isolamento conscientes de nossa missão neste momento, o que não nos impede de vivermos com incertezas e preocupações.
Neste instante em que os pais estão convivendo muito mais com seus filhos, em situações nem sempre confortáveis, é preciso estarmos atentos aos nossos e aos movimentos deles — especialmente se forem crianças pequenas. Até porque comunicamos não apenas com palavras, mas com gestos e comportamentos; com o nosso estresse e ansiedade.
Um texto publicado pela The Lancet, nessa terça-feira, com o título “Protegendo a saúde psicológica das crianças através de uma comunicação eficaz sobre a COVID-19”, relata que crianças com menos de dois anos estão cientes das mudanças ao seu redor — uma compreensão que evolui ao longo da infância e da adolescência.
A ausência dos avós que em muitos casos são os que auxiliam nos cuidados das crianças, quando pais e mães trabalham ou estudam, é facilmente percebida por elas. O afastamento de outras pessoas que costumam frequentar a casa, também. Situações que podem deixá-las inquietas e incomodadas; sentimentos que se expressam pela ansiedade ou por comportamentos desafiadores em relação aos pais.
O trabalho dos psiquiatras da Universidade de Oxford Louise Dalton, Elizabeth Rapa e Alan Stein propõe que se realize uma comunicação eficaz sobre a pandemia dentro de casa. Os pesquisadores nos lembram que as crianças estão expostas a grande quantidade de mensagens enquanto enfrentam mudanças em sua rotina diária e infraestrutura social — assim como os pais. Isso não significa que devemos sonegar-lhes mais informações sobre o assunto, pois “quando essa informação está ausente, as crianças tentam entender a situação por conta própria”. Ou seja, se você não falar, elas ficarão sabendo assim mesmo e a partir de mensagens sobre as quais você não tem qualquer domínio.
Quando a criança tem idade entre 4 e 7 anos, o entendimento é influenciado pelo que os estudiosos chamam de pensamento mágico, uma fase em que começa a ter senso de consciência mas ainda com uma compreensão limitada do mal que nos ataca neste momento. É quando ela começa a desenvolver crenças de que os pensamentos, desejos ou ações não relacionados podem causar eventos externos — e esse fenômeno pode levá-la a se culpar pela doença ou entender que está sendo punida por mau comportamento que tenha tido em algum momento.
O que se conclui é que o silêncio não é a solução — aliás nunca foi como deixei claro no livro “É proibido calar! Precisamos falar de ética e cidadania com os nossos filhos”.
Por menores que sejam, nossas crianças perceberão que algo diferente está ocorrendo no entorno delas. Deve-se aproveitar o momento, por exemplo, para transmitir orientações básicas de higiene que vão se transformar em hábitos para a vida: lavar a mão com frequência, evitar colocar a mão no rosto, e tossir ou espirrar com a proteção do braço.
A comunicação eficaz proposta pelos psiquiatras passa por ser honesto nas explicações sobre a COVID-19 e os motivos que nos levam a estarmos confinados e mantendo distância de outras pessoas; pelo uso de uma linguagem adaptada a idade e ao nível de compreensão da criança; uma vigilância maior para perceber se a criança não está se culpando inadequadamente pelos acontecimentos; e uma escuta atenta para se ouvir aquilo que ela não diz, mas a atormenta.
“A comunicação sensível e eficaz sobre doenças com risco de vida traz grandes benefícios para as crianças e o bem-estar psicológico de longo prazo de suas famílias”, escrevem os psiquiatras.
Com a construção de um diálogo em família — que se fará mais fácil agora, em plena crise, a medida que já tenha sido exercitado anteriormente —- enfrentaremos melhor os males e as mortes que ocorrem devido ao novo coronavírus. E fará com que nossos filhos sejam parceiros importantes para compartilharmos as dificuldades de agora, nos consolarmos mutuamente e sairmos mais fortes da experiência que estamos vivenciando em casa.
Os meninos — que já não são tão meninos — estão rindo lá na sala. Isso me fortalece.
Lindo texto Milton. Neste momento fomos surpreendidos por mudanças obrigatórias de vida para um gesto de solidariedade coletiva e este valor pode e deve ser transmitido as crianças. Nos emocionamos algumas semanas antes do confinamento com o vídeo de um pai na Síria que transformou os momentos de bombardeio em uma brincadeira com a filha de 05/06 anos. Este é o caminho para estabelecer a ponte de comunicação com as crianças. Ensinar a importância do amor através da solidariedade de forma lúdica e feliz pois ser solidário traz uma enorme alegria. Abraços.