Rubens Cano de Medeiros
Ouvinte da CBN
Primeiro, um descuido. Subsequente, teimosia. E, arrematando a
costura, dúplice insensibilidade e grosseria. Pronto! Eram os
ingredientes da minha “tragédia”.
Daquele bonde camarão, nem senti raiva. Já do motorneiro… E do
motorista – lembro bem – do Fordinho Prefect verde, ah…
Meu quinhão de sangue ibérico levou-me a rogar, aos dois, várias
pragas! Que, como sói acontecer com imprecações, são inúteis, inócuas:
até aumentaram minha raiva…
Descuido que, meia horinha mais, revelar-se-ia fatal. Tínhamo-nos
esquecido – eu e meus pais, à saída, de travar o portão com a tramela.
Sem que notássemos, a danadinha pôs-se a nos seguir. Na nossa
caminhada, subidona da José Antônio Coelho a fora.
Meu sobrenome Cano – foneticamente mal aportuguesado, do castelhano –
motivava que perguntassem: “Você é filho de ISPANHÓR?”. Não era. Mas
neto, sim.
E completavam. “Espanhol é tudo teimoso!”. Minha mãe, fila de
imigrantes da Andaluzia, a Isabel Cano, ela teimava e contrariava! Eu
até que muito insisti, no percurso.
“Manhê! Vâmo voltar, prender ela no quintal…”. Mas qual! Minha mãe
retrucava: “NÃÃÃO! Ela volta, sozinha!”. Voltou? Seguiu-nos até os
trilhos da Domingos de Morais. Até a placa branquinha, PARADA DE
BONDE, no alto, perto de fio trólei.
Lembro nítido! Era 25 de janeiro – íamos passear no Centro. Eu,
moleque, naquele feriado, algum ano da década de 50, não longe de ter
passado o IV Centenário.
Revejo, de memória. Então, o bonde camarão chegou. Um, da linha 101 –
Santo Amaro. De letreiro Praça João Mendes.
A porta da frente se nos abriu – subimos. Incontinenti, ela nos quis
seguir – até botou as patinhas no degrau de ferro, dobrável, da
própria porta. Mas…
O maldoso motorneiro, vendo, fechou abruptamente! Lançou o animalzinho
à frente do carro, cujo maldoso motorista sequer diminui a velocidade:
PLAFT! Doloso, matou! Minha mãe bradou: “Não olha!”. Eu? Horrorizado,
vi tudinho.
De fato, permitiam-se carros no contrafluxo de bondes; porém bastava
frear… Num átimo, aí fechei os olhos. As lágrimas que chorei ainda
gotejavam na triste volta… A cachorrinha jazia nos
paralelepípedos…
Naquele festivo 25 de janeiro, Vila Mariana me sapecou um desgosto.
À época, moleque, eu adorava folhear – ler, mesmo – a bela A Gazeta.
Cujas edições comemorativas nos 25 de janeiro traziam lindas
ilustrações e nitidíssimas grandes fotos em preto e branco – me
encantavam!
Sem exagero, eu lia inclusive… a página policial! Página que – hoje
suponho – bem poderia, no dia seguinte à tragédia, ter estampado uma
certa manchete…
“FERIADO MANCHADO DE SANGUE – BONDE E CARRO ASSASSINOS – POIS NEM
SEMPRE O HOMEM É O MELHOR AMIGO DO CÃO”.
No 25 de janeiro seguinte… Que bom! Outro cãozinho já tinha me vindo
– cicatrizar o coração…
Ouça o Conte Sua História de São Paulo
Rubens Cano de Medeiros é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva o seu texto agora e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br e ouça o podcast do Conte Sua História de São Paulo.
Milton Jung.
Em minha Vila Mariana de infância a molecadinha soltávamos, acho que se chamavam “chinesinhos”, pequenos balões de minúscula tocha de cera (parafina?), que logo, logo o fogo tragava.
Balão, porém “inofensivo” se comparado aos monstrengos enormes, perigosos de incêndios, que surgiram com o tempo.
Nossa alegria pouco durava. Apagado – sem vida -, o simplório “aeróstato” rebolava no ar. E caía, murchinho… Decepção infantil.
As histórias, bem… Sem desmerecimento (pelo contrário: narradas com vivacidade e peculiaridade), elas também duram pouco, no ar (que pena). São de curtos minutos – porém, fartos de vida!
Não se apagam – carreiam para os corações ouvintes um contentamento de emoção que sequer um ciclone haveria que dissipar.
Rubens