Quintanares: O cisne

 

 

Poesia de Mário Quintana
Interpretação de Milton Ferretti Jung

 

O cisne que estava imóvel sobre o piano
desliza agora sobre as águas negras
ao som da valsa
que eu tocava a quatro mão
uma menina Gertrudes
se fosse ao menos uma Gertrudes Stein

 

o nome da valsa não me lembro
seria o cúmulo se fosse aquela sobre as ondas
que se tocava tanto no fim do mundo
e o pior de tudo
é que as visitas aplaudiam sinceramente
que menino inteligente

 

oh, tempos
oh, gente
a menina Gertrudes era enjoada e pretensiosa
como suas calças de babado.
e olhava-me com ares de quem sabia coisas
de que eu não entendia nada
é que as meninas sabem mais do que sabem

 

e havia um velho
que me parecia mais velho do que todos os retratos da sala
e que dizia sempre naquela sua voz de molas de relógio
ai, que Catitas,
ai, que catitas

 

e com as palmas das visitas
nem se ouvia o rumor das águas infinitas
que vinham subindo, subindo

 

 

Quintanares foi ao ar, originalmente, na rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: A surpresa de ser

 

 

Poesia de Mário Quintana
Interpretação de Milton Ferretti Jung

 

A florzinha
Crescendo
Subia
Subia
Direito
Pro céu
Como na história de Joãozinho e o Pé de Feijão.
Joãozinho era eu
Na relva estendido
Atento ao mistério das formigas que trabalhavam tanto…
E as nuvens, no alto, pasmadas, olhavam…
E as torres, imóveis de espanto, entre vôos ariscos
Olhavam, olhavam…
E a água do arroio arregalava bolhas atônitas
Em torno de cada pedra que encontrava…
Porque todas as coisas que estavam dentro do balão
Azul daquela hora
Eram curiosas e ingênuas como a flor qua nascia
E cheias do tímido encantamento de se encontrarem juntas,
Olhando-se

 

Quintanares foi quadro apresentado originalmente na rádio Guaíba de Porto Alegre e os arquivos reproduzidos no blog são do narrador

Mário Quintana: O Menino Louco

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicado em Apontamento de história sobrenatural
Interpretada por Milton Ferretti Jung

 

Eu te paguei minha pesada moeda
Poesia…
Ó teus espelhos deformantes e límpidos
Como a água! Sim, desde menino,
Meus olhos se abriam insones como flores no escuro
Até que, longe, no horizonte, eu via
A lua vindo, esbelta como um lírio…
Às vezes numa túnica de Infanta
Sonâmbula… Às vezes virginalmente nua…
E era branca como as nozes que os esquilos descascam na mata…
Pura como um punhal de sacrifício…
(Em meus lábios queimava-se, ignorada, a palavra mágica!)

 

Quintanares foi ao ar, originalmente, na rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: Pedra rolada

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicado em Nova Antologia Poética
Interpretado por Milton Ferretti Jung

 

Esta pedra que apanhaste acaso à beira do caminho
– tão lisa de tanto rolar –
é macia como um animal que se finge de morto.

 

Apalpa-a… E sentirás, miraculosamente,
a suave serenidade com que os mortos recordam.

 

Mortos?! Basta-lhes ter vivido
um pouco
para jamais poderem estar mortos

 

– e esta pedra pertence ao universo deles,

 

Deposita-a
no chão,
cuidadosamente…

 

Esta pedra está viva!

 

Quintanares for originalmente ao ar na rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: Numismática

 

 

Poema de Mário Quintana
Publicado em Apontamentos de História Sobrenatural
Interpretado por Milton Ferretti Jung

 

A moeda de prata
é casta.
tem um brilho de luar.
A moeda de ouro
traz a efígie de um touro solar.
Ela acende um brilho assassino no olhar.
Com elas se compram cortesãs.
Com elas,
por causa delas,
repousam galeões no fundo do mar.
A moeda de ouro é pomposa
e vulgar como o Rei-Sol.
A moeda de prata é uma rosa lunar.
Uma rosa branca.
Não sei por que, parece
uma Ave-Maria…

 

Quintanares foi quadro apresentado, originalmente, na Rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: O velho do espelho

Poesia de Mário Quintana
Publicado em Apontamentos de história sobrenatural
Interpretação Milton Ferretti Jung

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto…é cada vez menos estranho…
Meu Deus, Meu Deus…Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga…Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste.

Quintanares: Contigo fiz, ainda em menininho

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicada em A Rua dos Cataventos
Interpretada por Milton Ferretti Jung

 

XI [CONTIGO FIZ, AINDA EM MENININHO]

 

Contigo fiz, ainda em menininho,
Todo o meu Curso d′Alma… E desde cedo
Aprendi a sofrer devagarinho,
A guardar meu amor como um segredo…

 

Nas minhas chagas vinhas pôr o dedo
E eu era o Triste, o Doído, o Pobrezinho!
Amava, à noite, as Luas de bruxedo,
Chamava o Pôr-do-sol de Meu Padrinho…

 

Anto querido, esse teu livro “Só”
Encheu de luar a minha infância triste.
E ninguém mais há de ficar tão só:

 

Sofreste a nossa dor, como Jesus…
E nesta Costa d′África surgiste
Para ajudar-nos a levar a Cruz!…

 

Quintanares foi programa originalmente apresentado na rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: Eu faço versos

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicado em A rua dos Cataventos, 1940
Interpretação Milton Ferretti Jung

 

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos…
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

 

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos…
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

 

“Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!”
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
“Que tédio!” o coro dos Amigos clama.

 

“Mas que vos dar de novo e de imprevisto?”
Digo… e retorço as pobres mãos cansadas:
“Eu sei chorar… Eu sei sofrer… Só isto!”

 

Quintanares foi ao ar originalmente na rádio Guaíba de Porto Alegre

Quintanares: A mesma ruazinha sossegada

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicada em A Rua dos Cataventos, 1940
Interpretada por Milton Ferretti Jung

 

 

Para Emilio Kemp

 

É a mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora…
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

 

Mas parece que a luz está cansada…
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora…

 

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos…
Mas para quê?… Se não adiantam mais!…

 

Pobres cartazes por aí a fora
Que inda anunciam: — ALEGRIA — RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!…

 

 

Quintanares: Que bom ficar assim, horas inteiras

 

 

Poesia de Mário Quintana
Publicado em A Rua dos Cataventos, 1940
Interpretação de Milton Ferretti Jung

 

XXXIII [QUE BOM FICAR ASSIM, HORAS INTEIRAS]

 

Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando…, e olhando as lentas espirais…
Enquanto, fora, cantam os beirais
Abaladilha ingênua das goteiras…

 

Evai a Névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a Cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa,
Das poéticas novelas policiais…

 

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas…

 

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês…

 

Quintanares foi produzido, originalmente, pela rádio Guaíba de Porto Alegre, e é reproduzido todo domingo no blog