Sobre esquecer o passado

Por Simone Domingues

@simonedominguespsicologa

“Às vezes é preciso parar e olhar para longe,

para podermos enxergar o que está diante de nós”

John Kennedy

O filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” (2004) traz a história de Joe e Clementine, um casal que após diversas tentativas para que o relacionamento dê certo, opta por esquecer um ao outro. Para isso, eles contratam uma empresa com tecnologia especializada em apagar as lembranças dolorosas. Porém, no meio do processo, Joe percebe que também tem boas memórias sobre Clementine e não quer perdê-las, apesar do rompimento atual.

Na ausência de uma tecnologia que nos permita tal feito e embalados pela ficção, se você pudesse apagar da sua mente as lembranças indesejadas, você o faria?

Me desculpe a insistência das perguntas, mas você desejaria apagar apenas as lembranças “ruins”? E por que não as “boas” memórias?

A resposta pode parecer óbvia, mas se assim for, compreendo que o desejo não é pelo esquecimento das experiências ou aprendizagens, mas sim, para evitar o sofrimento que essa lembrança evoca.

Nossas memórias, sejam de experiências boas ou dolorosas, falam da nossa história. Falam sobre quem somos. E se somos quem somos, é porque nossas experiências nos permitiram as aprendizagens sobre a vida, sobre o mundo e sobre nós mesmos, constituindo a nossa identidade, isso que nos torna únicos.

Não é possível registrar apenas o lado bom da vida. Porque isso não seria a vida real… Isso não significa que precisamos viver afunilados pelas situações dolorosas. Porque isso também não exprime tudo o que vivemos. Mas é preciso olhar além…

Onde estamos quando tantos sofrem os horrores da guerra?

Onde estamos quando tantos sofrem a devastação causada pelas mudanças climáticas?

E se apagássemos isso da nossa memória, numa busca desenfreada para mantermos apenas as lembranças positivas?

Só poderemos agir de maneira diferente e construir uma vida mais significativa, se olharmos para as nossas vivências e compreendermos o que elas nos ensinam.

Viver exige que estejamos de olhos bem abertos. Não me refiro, obviamente, à capacidade visual. Viver exige que estejamos presentes em nossas próprias vidas. E estar presentes em nossas vidas significa viver o momento atual, esse mesmo que muda o tempo todo e não nos pede permissão.

Diante dos desafios em vivermos o momento presente, muitos buscam em medicamentos as soluções para driblar o cansaço da rotina extenuante. Muitos buscam em medicamentos as soluções para esquecer os problemas e dificuldades que se apresentam, como num entorpecimento da realidade, fugindo de suas vidas, mergulhados num sono que de tão rápida a sua chegada nem permite reflexões.

E assim, enveredamos pelos caminhos do não sentir: não queremos experimentar a tristeza, o medo, a solidão…

Evitar situações ou eventos que desencadeiam emoções difíceis não tem nenhum efeito permanente no nosso bem-estar. A evitação pode até diminuir temporariamente as emoções dolorosas, mas não terá nenhum efeito na maneira que reagiremos a essas situações ou eventos no futuro, porque cada emoção tem a sua função, mesmo aquelas que são mais difíceis. Elas nos comunicam sobre o que acontece a nossa volta, sobre o que nos acontece e nos motivam para a ação. Se desejamos esquecer algo, é porque sabemos que podemos construir algo melhor, mais significativo. Mas como saberíamos se nos esquecêssemos disso?

Sendo assim, espero que aquela pergunta inicial se torne obsoleta, porque como dizia o professor Iván Izquierdo:

“O passado contém o acervo de dados, o único que possuímos, o tesouro que nos permite traçar linhas a partir dele, atravessando o efêmero presente que vivemos, rumo ao futuro”.

Simone Domingues é psicóloga especialista em neuropsicologia, tem pós-doutorado em neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das fundadoras do canal @dezporcentomais, no YouTube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung. 

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